quinta-feira, 10 de abril de 2014

UTI ambiental: revitalização de bacias hidrográficas I, artigo de Osvaldo Ferreira Valente



[EcoDebate] As nossas bacias hidrográficas estão perdendo a capacidade de produzir água com regularidade. Ou provocam cheias e inundações, conforme notícias frequentes, ou ameaçam com escassez nos períodos de estiagens. Quaisquer dos comportamentos provocam sofrimentos e reações de desconforto ou até de revolta. E se há mudanças no regime de chuvas, com muito mais razão precisamos rever os nossos conceitos de uso das bacias hidrográficas, que, até pela Lei das Águas, é a unidade básica de produção e uso de água.
Não é demais repetir, sempre, que na maior parte do território brasileiro, com exceção, talvez de algumas áreas do Semiárido nordestino, as bacias hidrográficas recebem, anualmente, grandes volumes de águas oriundas das precipitações pluviométricas. A bacia do Rio Doce, por exemplo, com área de 83.400 Km2 recebe volume anual em torno de 100 trilhões de litros d’água. Conforme já foi dito em outros artigos da série UTI ambiental, temos de saber, de cara, que aproximadamente 70 % deste volume volta à atmosfera por evapotranspiração, fenômeno importante na existência e processamento do ciclo hidrológico. Mesmo assim, ainda restam 30 trilhões de litros d’água para serem manejados ao longo da bacia. E é sobre esse manejo que passamos a fazer algumas considerações.
Revitalizar, segundo dicionários, é o conjunto de medidas que visam criar nova vitalidade, ou dar novo grau de eficiência a alguma coisa. Daí, talvez, venha a sensação muito comum de achar que revitalizar bacias hidrográficas resume-se na despoluição de suas águas, dando mais condições à vida nos cursos d’água que as drenam . Devemos, entretanto, preferir o significado de dar novo grau de eficiência à bacia hidrográfica que se encontra degradada e processando mal os volumes de água recebidos pelas chuvas. Há um erro, portanto, na constante insistência de se referir à revitalização de rios, quando a preocupação deve ser sempre com as bacias, pois os rios são produtos destas. Ouvi, dia desses, uma entrevista com um presidente de Comitê falando sobre o convênio de sua agência com uma autarquia que vai ajudar na produção de planos de saneamento básico para vários municípios de sua área de atuação. Tudo bem, nada contra os planos que são importantes. Mas há um erro de expectativa de resultados quando ele diz: “E  com isso nós vamos melhorar o índice de qualidade das águas da bacia e garantir o futuro desta bacia para todos”.  Nenhuma referência à quantidade de água. Vale mencionar, ainda, que a lei federal que instituiu os planos municipais de saneamento básico incluiu o abastecimento de água, mas diz que, nesse aspecto, ele (o plano) deve tratar “desde a captação até as ligações prediais”. Apesar de captação poder ter um significado mais abrangente, no entendimento usual ela refere-se apenas ao ponto de coleta de água.
E revitalizar bacias é uma tarefa para a hidrologia e para o manejo de bacias hidrográficas. E manejo de bacias hidrográficas é a ciência e arte de usar racionalmente os recursos naturais da bacia, visando produção de água em quantidade e qualidade. É preciso ficar claro, portanto, pela abrangência do conceito exposto, que a revitalização não é um trabalho a ser dominado apenas por hidrólogos e sanitaristas, com origem na engenharia civil e, mais recentemente, na engenharia ambiental. Vejo, com preocupação, algumas licitações exigirem um determinado profissional, quando a revitalização é um trabalho tipicamente multidisciplinar. Vale ressaltar, também, que estudos hidrológicos que não venham acompanhados, logo, de propostas de manejo das respectivas bacias são estéreis e acabam perdidos em gavetas burocráticas. As condições das bacias estão mudando rapidamente, pela dinâmica acelerada da degradação, e ficamos vendo diagnósticos serem feitos e refeitos e recursos financeiros usados e desperdiçados.
Não me canso de repetir, em meus artigos sobre o assunto, que a preocupação com a produção de quantidade de água deve preceder a da qualidade. Se a água está poluída, há sempre a possibilidade, mesmo que cara, de torná-la apta para determinados usos. Mas se ela não está disponível, não há nada afazer. E produção de água, nas regiões mais habitadas do país, está muito concentrada em aquíferos e nascentes posicionados em propriedades rurais, dedicadas a atividades agropecuárias e florestais. E para garantir o bom funcionamento desses aquíferos, dessas nascentes e dos córregos, ribeirões e rios assim formados e mantidos, os trabalhos têm que começar pelo emprego de tecnologias capazes de aumentar a quantidade de água infiltrada, não apenas nas áreas de APPs, mas principalmente nas áreas cultivadas. E, para isso, vamos precisar da colaboração de produtores rurais, de engenheiros agrônomos, de engenheiros florestais e de técnicos de nível médio, especializados em assuntos rurais. O trabalho é essencialmente de campo e de nada adiantam os relatórios pomposos, recheados de fórmulas e de modelos matemáticos, oriundos de estudos hidrológicos, teóricos, mas que são áridos para o pessoal de campo. Os conceitos hidrológicos aplicáveis à produção de água não precisam de tais sofisticações; podem ser desenvolvidos por sequências de cálculos ao alcance dos técnicos que estão lá na origem de tudo, ou seja, trabalhando com os produtores rurais que ocupam milhares de pequenas bacias hidrográficas que se juntam para formar as grandes.
Infelizmente, os Comitês de Bacias e suas respectivas Agências, já em operação, ficam pressionados por grupos fortes e que preferem trabalhar em estudos e levantamentos que levem a obras de engenharia que, como todos sabemos, despertam grande interesse dos políticos que militam nas diversas instâncias do poder. E é uma pena que a academia também comece a cometer pecados semelhantes, com base no princípio de que se é possível complicar, para que simplificar.
Ao fim e ao cabo, e como eu não gosto só de criticar, prometo, no próximo artigo da série UTI ambiental, discutir um roteiro de planejamento para revitalização da capacidade de produção de água de pequenas bacias hidrográficas, que pode servir para um plano mais simples e, também, para outro mais elaborado.
Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas, professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e autor de dois livros sobre o assunto: “Conservação de nascentes – Produção de água em pequenas bacias hidrográficas”e “Das chuvas às torneiras – A água nossa de cada dia”; colaborador e articulista do EcoDebate .( valente.osvaldo@gmail.com)
EcoDebate, 09/04/2014

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