terça-feira, 11 de julho de 2023

BONFIM >ALSUS SANGALO

 


ALSUS SANGALO


(De Hélio Freitas – Senhor do Bonfim, BA, 24/08/20)


Amigo Alex Barbosa


Pede-me você que eu fale sobre o pai de Ivete Sangalo. Pois é, eu havia esquecido, desculpe. Começo agora; e começo dizendo que seu nome, Alsus  (poucas pessoas o pronunciavam corretamente),  resultava da junção  da primeira sílaba do nome de sua mãe (Alzira) e da última sílaba do nome de seu pai (Jesus). Dona Alzira era bonfinense, o Sr. Jesus era espanhol. O Alsus e todos os seus irmãos (ele era o mais velho, suponho) nasceram aqui em Senhor do  Bonfim. Meu conhecido desde a infância e meu amigo desde a juventude, tínhamos a mesma idade. Foi das pessoas mais inteligentes que conheci: note-se que jamais frequentou qualquer escola formal, aprendeu a ler em casa, mas sempre que podia agarrava um bom livro pra ler. E  o fato é que, nas rodinhas de conversa aqui formadas frequentemente pelos jovens da época em alguma esquina ou em torno de um dos bancos do jardim do cinema, era ele um dos que mais tinham  algo a  dizer. E dizia com desembaraço, com segurança. Às vezes até botando filosofia no que dizia. Por natureza irreverente e, ao mesmo tempo, sentimental, esta segunda característica ele fazia questão de esconder. Mas, volta e meia ela escapulia ao seu controle e vinha à tona: quando,  por exemplo, ele, acompanhando-se ao violão, entoava alguma marcha-rancho (quase sempre são bonitas) ou um belo samba-queixume  do gaúcho Lupicínio  Rodrigues; e muito mais quando a canção por ele cantada era Angelitos Negros – na sua versão original, isto é, na língua castelhana. É que a letra da música referida interpela e critica os pintores cujos pincéis, burramente, só sabem criar e reverenciar anjos louros; Induzindo assim  a desconfiar-se que quem governa o céu é um bando de  racistas abestados. Indiferente às convenções sociais pequeno-burguesas, o Alsus  nunca quis ser empregado de ninguém. Trabalhava muito, mas sempre do jeito que queria e quando queria. Não só ele era assim, todos os irmãos – e  irmãs – também o eram.  Entrássemos a qualquer hora na sua casa, impossível era a gente não capitar desde logo sinais indicativos de que sob o teto daquela família não havia lugar para coisas complicadas. Risos, cânticos, acordes de violão, a batida cava de um martelo, o lépido saracotear de uma máquina de costura, tudo se misturava. E assim, desse jeito, a vida ali  transcorria com espontânea simplicidade. De vez em quando, intrometia-se no recinto, vindo lá de dentro, o som agudo de uma ocarina – pequeno instrumento de origem árabe, salvo engano. Dona Alzira, uma doçura de pessoa, também tocava violão, a ocarina era o Sr. Jesus quem tocava. Sentindo saudades, talvez, da terra distante.  Voltando ao Alsus: durante muito tempo ganhou a vida vendendo miudezas nas feiras. Aqui e acolá armava sua barraca. Já casado, e por uma boa temporada, ele foi dono de uma joalheria em Juazeiro. Conheci. Foi em 1974 que eu, estando por aqui  a passeio, fui àquela cidade e passei lá dois dias hospedado em sua bela casa – a Ivete era ainda bem pequenininha. Na ocasião ele ainda carregava um trauma cuja causa fora  ter sido lesado por um ex-sócio em comércio de compra e venda de automóveis. E o fato de ter-se deixado enganar, era o que mais o incomodava. Por isso sua esposa considerou providencial minha presença ali naquele momento – ele necessitava desabafar com algum amigo – falou. E realmente ele desabafou: muitíssimas vezes, no seu carro, pela ponte, rodamos por Petrolina. Indo e voltando. E ele a me contar detalhes do caso acontecido. Já passava de meia noite quando o vai e vem que começara mais ou menos às vinte horas, afinal foi encerrado. Só o vai e vem porque a conversa continuou. Agora era em um barzinho da periferia, local um tanto sombrio e no meio de um descampado. Pouquíssima iluminação e, ao redor, via-se apenas mato.  Quando fomos para casa já era madrugada. Ignoro se minha companhia serviu para alguma coisa. Voltei pra Bonfim, voltei para o Rio de Janeiro.


Recordo a primeira vez que ele me visitou lá no Rio: foi em 1967, isso eu lembro porque minha filha mais velha tinha mais ou menos um ano de idade. Ela ainda não andava e não aceitava o colo de ninguém. Quando alguém, fosse quem fosse, oferecia-lhe os braços, ela logo rejeitava esticando-se para traz. Pois bem: o Alsus chegou e foi só fazer o gesto e dizer venha, ela foi, não se fez de rogada. Ficamos admirados. Perguntei se ele havia hipnotizado minha filha. Curioso: os outros dois, filha e filho, nascidos depois, também, desde pequenos, mostraram simpatia por ele. E cresceram assim. Felizmente, porque, senão – parece que estou vendo –, em algum momento ele haveria de queixar-se para alguém: “os filhos do Helio são uns pernósticos, muito metidos. Ele não soube criar”. Escapei da malhação –  ainda bem.


Sei de muitas estórias engraçadas envolvendo o Alsus. Vou contar só duas, com a segunda encerrarei estas notas, estou com preguiça. A primeira aconteceu em 1988, eu havia ficado viúvo, e acompanhado de minha filha do meio, passava por Salvador de volta para o Rio. E aí a  Candita, irmã dele e muito minha amiga, gentilmente me ofereceu um jantar. Ela morava num bonito apartamento no Itaigara. Foi uma reunião agradável, inclusive Mônica (filha de Alsus) cantando e tocando violão, o reencontro com alguns conterrâneos, momentos felizes. No final da festa, todos se despedindo e saindo, ele entendeu que devíamos continuar a confraternização na rua. Eu disse que não ia. E tratei de justificar: o motorista precisava ir descansar, minha filha estava com sono, etc. Partiu para o deboche:  “Olha gente, o poeta não é mais de nada, no Rio ele virou xibungo”. Fui pra casa, claro. Quanto a ele, não sei se sossegou ou se, com a adesão de algum maluco foi fazer o que queria. Vamos à segunda estória. Aconteceu no Rio de Janeiro, antes da primeira, e mostra como em certas horas muito vale a presença de espírito. Mesmo que se tenha de botar no meio uma mentirinha. Foi assim: na ocasião, 1984 ou 1985, algum problema acontecia com a gasolina, não sei se escassez ou o preço muito alto nos postos, o certo era que os taxistas cariocas recusavam-se a fazer corridas para alguns lugares; entre estes se incluía Santa Teresa, meu bonito bairro. É que, embora ele esteja localizado perto, bem no centro da cidade, suas curvas e ladeiras até hoje desestimulam muitos motoristas. Aliás, já havia um tempão, duas décadas pode-se dizer, que seus moradores vinham enfrentando problemas no transporte; isso desde quando administradores insensatos tentaram substituir os ordeiros  e tradicionais bondinhos por ônibus. Estes, grandes, pesadões e poluidores, não são adequados para a topografia do bairro. Todos nós brigamos contra a patifaria, mas, no final, saímos perdendo: o bondinho de Santa Teresa não foi extinto, no entanto, para o bem do intruso “mastodonte”, restou seriamente mutilado. Mas voltemos à estória. Naquela noite eu necessitava estar em casa antes das vinte horas, faltava pouco para as dezenove e a fila do tal ônibus não andava. Resolvi tentar um táxi. Foi quando, saindo do terminal, me deparei com o Alsus. Surpresa mútua, mútua alegria, ainda mais quando ele se dispôs a me acompanhar, conquanto eu logo tenha intuído que, com ele ao meu lado, gordo daquele jeito, iria ser quase impossível um motorista me atender. A mesma intuição ele também teve, tanto assim que, sagaz, encostou-se a uma árvore, disfarçando; Pois é, por sorte ou não sei bem por quê, um daqueles carros parou; e antes que seu condutor terminasse de dizer que ia me levar, num segundo,  o Alsus já se aboletara dentro dele, que, mesmo feito de  ferro, deu um gemido e pendeu um pouco para o lado. Quando, meio assustado, me acomodei, o taxista, enraivecido, já imprecava. A conciliação ia agora depender de mim, de minha capacidade. Primeiro, prometi acrescentar algum dinheiro ao valor da corrida, em seguida sugeri ele fosse por Laranjeiras, um percurso maior, mais caro para mim, porém, bem melhor para ele: menos curvas, ladeiras mais suaves. Acatou a sugestão, mas os resmungos não paravam e a cara de raiva não sumia; e, por causa disso, um mal-estar enervante o tempo todo se enroscava em mim. Já estávamos no comecinho da Rua Alice, metade do caminho, quando o Alsus pôs em prática a oportuna – e premeditada – ideia de, na hora certa, me fazer uma pergunta. E, feita assim de propósito, previa inclusive a consequência, boa ou ruim, conforme fosse o meu modo de responder, convincente ou atabalhoado.  E muito importante era que o motorista escutasse. Tanto a pergunta quanto a resposta. E refletisse. Aparentando naturalidade me foi então perguntado se (lá no Rio) eu continuava batendo o tambor. E, com ênfase, repetindo a pergunta, deu-se também um jeito de fazer crer que na Bahia eu já batucava. A primeira vontade foi retrucar negando: “Conversa doida esta, nunca bati tambor”. Compreendi a tempo, porém, quão necessário àquela hora era sustentar a mentirinha. Para o bem de todos. Então fiz a minha parte: “Claro, continuo batendo, não posso deixar de bater, é uma missão recebida”. A farsa valeu, deu resultado: o motorista, coitado, imediatamente calou-se. E, amedrontado, encolheu-se. E assim encolhido grudou-se mais ao volante. Crédulo, ingênuo, pertencia ao grupo de pessoas pra quem todo baiano é versado nos mistérios do Candomblé. Ou da Umbanda, sendo, portanto, dono de algum poder especial. E têm um medo danado.


Sãos e salvos – e silenciosos – chegamos ao destino. Paguei, cumpri o prometido e agradeci. Ele, timidamente, também agradeceu. E pediu que “desculpássemos qualquer coisa”. Não foi nada, eu disse. E também pedi desculpas. Manobrou o carro e foi embora. O Alsus, logo depois que deixou carro e motorista aliviados do enorme peso, danou-se a rir.  Lá para as tantas ele voltou para o hotel. De ônibus e sem problemas. Eu também dei boas. risadas – negar pra quê?


FIM


Foto: Acervo Ivete Sangalo

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