Por Flávio Xavier
NÁUFRAGOS SEM ESPERANÇA
Um silêncio ronda Porto Alegre. Mesmo o avanço do Guaíba é uma fúria silenciosa, como uma cobra que desliza suave seu veneno até o alvo. O silêncio surpreendeu até as baratas do Mercado Público; mesmo assim elas se salvaram.
O Rio Grande do Sul é a porta de entrada da crise climática mundial no Brasil. Quando as frentes frias esbarram na imensa bolha de calor que se estaciona no centro do país, as chuvas se mostram torrenciais. Houve cidades onde caiu quase 1.000 milímetros de chuva em poucos dias. Também há uma capilaridade de rios muito grande no Estado, que se colonizou principalmente nos vales, às suas margens, as estradas da época.
Mas era uma tragédia anunciada. Os metereologistas se transformaram nos novos oráculos da atualidade, mas com poucos seguidores, principalmente entre os governantes. Há dias, pesquisadores da Ufrgs pediram um plano de evacuação do centro e de outras áreas baixas. Ninguém os ouviu. A única régua que mede o nível do Guaíba tem controle manual e foi levada pela maré. No auge da crise, não se sabia o nível da enchente.
Outro fator que demonstra o amadorismo governamental é o cais do porto, em Poa. Há projetos para torres residenciais e comerciais nesse local, ignorando por completo a nova realidade climática.
A crise é gigantesca e o poder público é um anão. A infraestrutura foi destruída no interior. Há mais de 150 pontes e pontilhões derrubadas ou comprometidas. Não há acesso entre a capital e a serra. Há municípios totalmente isolados e destruídos. Plantações, indústria, comércio, tudo destruído.
Mas o cerne de tudo, o drama maior, é o humano. Nenhum governante, de qualquer esfera, chorou. Até agora, e tenho acompanhado bastante, uma única pessoa chorou em público: o fotógrafo jornalístico Jefferson Bottega, depois de acompanhar resgates de helicóptero. Num deles, nem todos conseguiram ser salvos. Quando a aeronave decolou, a casa foi levada pela fúria da água e os ocupantes remanescentes morreram.
Falta lucidez, que compromete o planejamento. É a maior tragédia ambiental do Rio Grande do Sul. O Estado está devastado, mas ainda não chegou ao fim. Mais vidas se perderão, a força destruidora avançará inexoravelmente.
É possível que algumas cidades deixem de existir, porque este fenômeno se repetirá, cada vez com mais intensidade. Bairros desaparecerão e nosso contato com os rios será repensada. Os rios que conduziram o progresso e a esperança no Estado agora cobra a conta do descaso com as suas margens, o avanço do agronegócio mais predador do mundo: o gaúcho.
A classe média está apavorada e foi ao supermercado comprar papel higiênico. No caminho encheu seu tanque de gasolina, pouco se importando com as ambulâncias e veículos dos bombeiros, que também se abastecem. Há poucos postos com combustível.
Os clubes náuticos, o antro do conservadorismo gaúcho, estão encolhidos na sua arrogância europeia. Os pobres, os pobres têm a família, os amigos, a igreja, os laços sociais que importam. São estes os laços que estão salvando vidas.
O Estado desapareceu. A elite gaúcha diminuiu o quanto pode o Estado. Nesta hora têm as mãos sujas, não de sangue, mas da água barrenta que invade as gargantas dos náufragos, os náufragos sem esperança.
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