domingo, 29 de novembro de 2015

A GRAVATA VERMELHA


Eram oito horas da manhã e uma gravata vermelha estava na lixeira do banheiro. Nos quatro anos seguintes àquele janeiro de 2003 até William Bonner passara a usar gravatas vermelhas. Ricardo usou as duas mãos para terminar de acordar os olhos e se certificar de que não passava de uma imagem falsa comum a quem acaba de levantar e vai cego ao banheiro mijar. Não, Ricardo não era o tipo de homem que urinava. Nascido e criado na Cidade Baixa sua virilidade requintada residia nas pequenas práticas diárias. O ex-coroinha da Paróquia Nossa Senhora da Boa Viagem aprendera desde cedo os princípios cristãos que o transformaram num homem bom e o encaminharam para o espiritismo kardecista. Era incapaz de fazer mal a uma muriçoca. Mesmo sendo picado insistentemente por elas. Seus modos eram deveras reais – no sentido azul do termo - quando sentava à mesa não havia um ser vivente que não o olhasse admirado, inclusive as muriçocas. Não, ele não havia sido criado pela avó. Mas foi com a morte de Dona Miúda que ele resolveu morar na casa de Enis. Este era fiel ao próprio nome e por isso amava gravatas. Virou bancário por capricho e sua vaga no Banco do Brasil tinha a mais profunda relação com o desejo de usar gravatas. Não à-toa preferia as agências do centro. Já haviam se passado quase doze horas e Ricardo permanecia no banheiro, olhando para o que parecia ser um grande desastre de desatenção masculina. O vermelho sobressaía entre o branco e o marrom dentro da lixeira metálica. Talvez se o fino tecido rubro estivesse na lixeira da área de serviço a revolta fosse menor ou ele teria simplesmente telefonado. Eram oito horas da noite e uma gravata vermelha continuava na lixeira do banheiro. A campainha tocou pela primeira vez, era gosto de Enis nunca levar a chave do apartamento da João Pondé. Lembrava do seu pai que sempre lhe abria a porta quando voltava do playground depois de todas as peraltices do menino da Barra. Foi depois da morte de seu pai, Floriano, auditor fiscal aposentado, que ele convidou Ricardo para morar com ela na Cidade Alta. A campainha tocou pela segunda vez, Enis ainda estava de ressaca da sua festa de aniversário ocorrida no dia anterior. Ricardo finalmente saiu do banheiro, avançou até a porta e pôs a mão na maçaneta. A campainha tocou pela terceira vez. Enis precisava explicar a Ricardo que a máquina de lavar havia desfiado o presente de aniversário que ganhara dele. Ricardo abriu a porta lentamente, de forma que ela fizesse o costumeiro barulho insuportável gerado pelas dobradiças com falta de óleo. Seus lábios carnudos tremiam e tudo o que queria era dar um soco na cara do bancário, quase não viu que Enis trazia na mão direita uma sacola da Riachuelo. A trilha deste desafeto noturno era um programa de rádio mal sintonizado, onde Glória Peres desabafava sobre a ausência do beijo no último capítulo de América.
Salvador, 16 de julho de 2013
Reginaldo Carvalho

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