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Foto ilustrativa |
por Elieton Cordeiro da Paixão/Oficial da PMBA e Licenciado em História
pela UPE
Por que os homens se julgam no direito de agredir as mulheres? Em que
lei está assegurada a prerrogativa de tal agressão? Por que alguns homens dessa
região, sobretudo das cidades de Senhor do Bonfim e Jaguarari, entendem que
podem agredir mulheres como se elas fossem escravas? As respostas para essas
perguntas são chocantes quando se dialoga com os agressores.
Alguns entendem simplesmente que possuem direito natural sobre suas
companheiras; outros entendem que podem abusar daquelas que estão sob sua
dependência financeira, como demonstrou recentemente um senhor acusado de
estuprar a própria neta aqui em nossa região. Ele entendia que o fato de
sustentar e manter economicamente sua descendência lhe conferia o direito do
“abuso”. Infelizmente temos concepções dessa natureza nesses rincões do Brasil.
Ainda estamos presos a um passado colonial, com baixíssima concepção de
dignidade humana. Os exemplos de violência à mulher nessa região nos convidam a
uma reflexão para entender os porquês dessa barbárie em pleno séc. XXI. Há algo
errado na formação dos homens no Piemonte Norte do Itapicuru. Por aqui muitos
entendem como algo normal agredir uma mulher.
A paisagem cultural tenebrosa que se contempla sob o olhar de um
policial aponta que muitos homens dessa região têm convicção de que suas
companheiras, filhas ou simplesmente o fato de serem mulheres, já é motivo para
sujeição aos homens. Toda região do Piemonte Norte do Itapicuru está infestada
de “machões” que enxergam as mulheres como propriedade material.
É como se eles vivessem na Roma medieval, onde existiam leis que davam
aos homens o direito de castigar suas esposas até a morte. Aliás, a morte tem
sido o destino de varias mulheres por aqui. Em Jaguarari se mata uma mulher a
pauladas pelo fim de um relacionamento; em Pindobaçu, pelo mesmo motivo, se
mata uma mulher a tiros. Já em Bonfim se mata por asfixia e por golpes de faca.
Tais crimes são vistos sob o eufemismo de “passionais”, ou “violenta emoção”,
segundo a doutrina penal.
Entretanto o policial, cujo labor diário o arrasta para centenas de
ocorrências envolvendo violência contra a mulher, sabe que a situação está para
além da paixão. O que de fato temos é um problema cultural agigantado, que se
compara aos rituais macabros de “mutilação genitais femininas”, ocorridos em
algumas regiões da África. Também por aqui, as sessões de socos, tapas,
pontapés, xingamentos, espancamentos, torturas, humilhações e feminicídios são
tão frequentes que não estão mais causando estranheza, e por isso vai se
firmando no imaginário das futuras gerações como algo normal. É a banalização
dos fatos assombrosos que os tornam fatos culturalmente aceitáveis. E nessas
terras do Piemonte Norte do Itapicuru, o alto índice de agressões tem tornado
esta prática como algo trivial.
Os números registrados pelo 6º BPM envolvendo violência doméstica são
uma vergonha para nossa região. É a concretização do assalto à dignidade
feminina sendo perpetrada por brutos. Até o mês de outubro de 2017, foram 215
ocorrências registradas por policiais militares. Senhor do Bonfim lidera em
números absolutos, seguido por Jaguarari, Cansanção e Queimadas. Todavia, em
números proporcionais, Jaguarari assume a vergonhosa liderança. Do total de
ocorrências, 76 resultaram em condução à DEPOL.
Junho foi o mês em que mais se registrou ocorrência envolvendo violência
contra mulher, plenamente justificável pelas festas ocorridas na região.
Enquanto policial, devo advertir que estes números registrados pelo 6º BPM, na
prática, são bem maiores, pois existem muitos casos que não são denunciados, ou
aqueles que são denunciados, no entanto, a vítima se recusa prestar
queixa-crime, e em muitos casos se negam a falar com o PM, temendo as
represálias futura dos companheiros.
Existe uma multidão de casos que ocorrem no ambiente doméstico e que não
chegam ao conhecimento da corporação. É a chamada “cifra negra”, um conceito da
criminologia referente àqueles crimes que não chegam ao conhecimento das
autoridades, permanecendo ocultos. Os números registrados pela PM são uma
vileza, mas eles representam somente a ponta do iceberg. A realidade é muito
mais infernal. E os agentes de segurança que estão no teatro de operações sabem
disso.
No CICOM (Centro Integrado Comunicação de Senhor do Bonfim, 190), a
violência contra mulher figura como a segunda maior causa de solicitação de
policiamento, perdendo apenas para perturbação do sossego. Isso sem levar em
consideração o Disk Denúncia 180, específico para denúncias de violência contra
a mulher. O reflexo desses números levou o comando da unidade a implementar a
Ronda Maria da Penha, que trabalha em conjunto com outros órgãos, para
inviabilizar a perpetuação das agressões sofridas por mulheres com medidas
protetivas. Uma iniciativa louvável que tem ajudado bastante a dignidade
feminina, com a efetiva participação da Polícia Militar nesta causa.
Sobre as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, há quem
entenda que elas são puro eufemismo e abrandamento da lei. São como se elas
estabelecessem níveis de agressões às mulheres e uma alternativa à prisão dos
agressores. Talvez seja reflexo da aberração dos nossos dias, em se criar
várias medidas cautelares opcionais à prisão, pois os presídios e cadeias
públicas não comportam mais ninguém.
O Brasil travou! Prender um agressor, ou qualquer outro criminoso, se
tornou burocrático ao extremo. Esses são tempos em que se inocenta por excesso
de provas. As medidas cautelares são uma opção à falência carcerária, conjugada
com a política criminal, que vem transformando ainda mais o país no paraíso da
impunidade. Uma desonestidade muito grande com as vítimas. São muitos recursos
e beneplácitos ao dispor dos criminosos, e aqui entram, também, os salteadores
da dignidade feminina, que por essas terras não cessam de se multiplicar. São
como os passageiros de Caronte (Divina Comédia, Dante) o barqueiro do inferno.
Eles aparecem a todo instante formando aquela paisagem sombria no primeiro
círculo do inferno. E o que pensa o policial militar diante dessa problemática?
Quando os furúnculos estouram na superfície do tecido social, são os
policiais que sentem de imediato os efeitos. As vicissitudes sociais, quando
irrompem na “pele social”, são logo sentidas pelas forças de segurança,
principalmente pela PM. A polícia trabalha muito na consequência dos fatos,
causados muitas vezes pelo vácuo das demais instituições, incluindo aí a
família. Ela trabalha em todos os flancos dos comportamentos desviantes e importunadores
da ordem e da paz social.
Estamos na base da pirâmide social e a ela nos misturamos, somos filhos
dessa amálgama social disforme, saindo dos mesmos cantos e extrato da
sociedade, como o inspetor Javret em os Miseráveis (Victor Hugo). Estamos no
mesmo patamar sombrio daquilo que combatemos. Eis aí a razão imensurável pela
qual o PM torna-se especialista nessas oscilações comportamentais da sociedade.
Somos as mãos que arestam as imperfeições do objeto. É por estar tão arraigado
a esses acontecimentos danosos que temos maior sensibilidade e entendimento
sobre causas e consequências das agressões à mulher. Somos os primeiros a
chegar ao local dos fatos, e é a partir dos nossos relatos que o trabalho das
demais instituições acontecem. Mas qual a gênese desses agressores, sob a ótica
do policial?
Os homens não nascem violentos. Eles aprendem e replicam a violência,
principalmente a violência contra mulher. É a cultura da violência vivenciada
pela sociedade que mais tem formado agressores de mulheres. Aqui na região são
tantos casos de violência doméstica que acabam afetando as crianças em seus
lares. São filhos que presenciam seus pais chegarem bêbados em casa, agredindo
suas mães das mais variadas formas de violência (verbal, patrimonial, sexual, psicológica
e física).
Os maus-tratos e desprezo para com as mulheres são tantos, que os jovens
vão se tornando adultos e encarando esse quadro como algo normal, e quase
sempre repetem o comportamento dos agressores, pois nesse universo não existe a
censura moral para estes atos de violência. Pelo contrário, às vezes é até
glamourizado. Isso quando somado à baixa escolaridade potencializa ainda mais,
devido a ausência de conhecimento em matéria de cidadania e dignidade da pessoa
humana; coisas que se aprende, primeiramente no seio familiar, depois na escola
e nas demais instituições de controle social. O desajuste familiar, a concepção
da mulher como subserviente, o uso de bebida alcoólica (na maioria das
ocorrências atendidas pela PM, o agressor quase sempre se encontra ébrio), a
falta de denúncia, a impunidade, o desprezo pela escola nutrido pelos jovens
etc. São fatores que formam os salteadores da dignidade feminina por essas
terras.
São estes aspectos que estão transformando as mulheres dessa região em
“saco de pancadas”. Importante ressaltar que a visão policial não enxerga culpa
nas vítimas. Nós compreendemos os vários motivos que levam essas criaturas a
sofrerem caladas. Também não comungamos com qualquer visão de que o agressor
seja doente, no sentido de inocentá-lo (vítimas da sociedade).
Sanar essa vergonha é uma tarefa difícil. Aqui no Alto Sertão, em alguns
pontos, vivemos ainda como homem medieval. Uma vasta ignorância funcional paira
sobre as pessoas, há um desprezo pelas letras nesse canto geográfico da Bahia,
que precisa ser estudado. A família desajustada, a ignorância, a baixa
escolaridade, os laços fracos de solidariedade, e acima de tudo a impunidade
das agressões, tem formado essa vergonha em nossa região.
Entendo que a punição tem caráter pedagógico muito forte para a
correição, o contrário também tem muita força, mas para ajudar a perpetuar as
agressões. Bater em mulher e não ser responsabilizado penalmente, ou mesmo
moralmente, com a censura social do meio, é continuar fabricando monstros para
aterrorizar as mulheres. Alguns até conhecem, ou já ouviram falar na Lei Maria
da Penha, mas isso não intimida. Aliás, as leis no Brasil não mais intimidam, o
Direito Penal perdeu seu simbolismo há muito tempo.
Para alguns agressores, as leis não passam de letras em papéis sem
nenhuma efetividade. Estão em outra esfera pragmática. Para muitos deles as
instituições públicas são incompreensíveis, afastados das letras. Vivem como o
personagem Fabiano, em Vidas Secas (Graciliano Ramos). Precisamos reestruturar
a família e mandar essa gente pra escola. Despertar o lado satisfatório da
educação e da civilidade. Mostrar que o respeito à mulher começa em casa.
Evidenciar que práticas ocorridas no Brasil e no mundo, de violência
contra a mulher não são mais aceitáveis. Casos de ataques com ácido, estupro
coletivo, mutilação genital, agressões, pagamento de dotes, assédio sexual,
crime de honra, feminicídio, casamento forçado, escravidão sexual,
apedrejamento, tráfico de mulheres, prostituição forçada e muitas outras formas
de violência são atitudes indecorosas que mancham a imagem do homem sobre a
terra.
Por fim concluo relatando sobre o labor policial. Atesto, após alguns
anos trabalhando na área operacional, diretamente com fatos e atos repugnantes,
onde conhecemos a natureza vil do homem, que policiais militares são fontes
fidedignas de pesquisa. Na sociedade nós conhecemos do ingênuo ao assassino; do
ladrão ao homem de boa vontade; da delinquência juvenil aos chefes de
quadrilha. Conhecemos as engrenagens do submundo, pois os atores das sombras
são presos por nossas ações. Sabemos sobre homens na mesma medida daqueles
coveiros de Hamlet, no Ato V, Cena I (William Shakespeare).
Ali se revela a compreensão real e pura sobre a alma dos homens e o seu
fim, sem devaneios românticos das pessoas de gabinete. Finalizo ressaltando que
mesmo sendo demonizados por parte da imprensa e por alguns pseudo intelectuais
doutrinadores, estamos incessantemente nas ruas de todo o país, configurando a
última trincheira de defesa social. Sendo destruída essa trincheira, Roma ruirá
perante os bárbaros. Independente de reconhecimento da população ou da mídia, e
querendo ou não, todos os homens quando se postam diante do perigo gritam pela
polícia. Por este motivo a palavra “polícia” casa bem com “esperança”, pois
efetivamente se coloca entre o criminoso e a sociedade. A palavra que os lábios
das vítimas balbuciam antes, durante e após o ataque dos homens maus…polícia,
polícia!
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Polícia Militar da Bahia
Comando de Operações Policiais
Militares
Comando de Policiamento da Região Norte
Sexto Batalhão de Polícia Militar
Seção de Comunicação Social