A consciência é humana, então para quê comemorar a consciência negra? Infelizmente não é raro ouvir este questionamento que se mostra uma fala racista que tenta diminuir a importância do dia 20 de novembro, data escolhida em referência ao aniversário de morte de Zumbi dos Palmares, principal liderança quilombola do Brasil Colônia, comemorado desde a década de 1970 pelo Movimento Negro Brasileiro, e instituída pela Lei 12.519 de 2011 como Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. Por isso, no mês de novembro se intensificam os debates, eventos culturais e manifestações contra o racismo e em defesa dos direitos do povo negro, proporcionando uma tomada de consciência do que é ser uma pessoa negra e como o racismo afeta este povo.
Defender uma consciência humana é fechar os olhos para o racismo que desiguala enquanto seres humanos, porque biologicamente todos são humanos, mas politicamente e culturalmente as pessoas compõem uma diversidade de povos. O racismo inferioriza a partir da ascendência africana e das características físicas, desvaloriza a força de trabalho e a capacidade intelectual e produtiva de negros e negras.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os negros e negras representam 56,1% da população brasileira, no entanto, há pouca participação nos espaços econômicos e políticos, ocupados por pessoas brancas e ricas. Além disso, as pessoas negras são as mais desempregadas; representam mais de 60% da população carcerária, as crianças negras são as que mais ocupam abrigos, a fome está presente em 10,7% das residências habitadas por pessoas negras. Entre pessoas de cor branca, esse percentual foi de 7,5%, como aponta estudos da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Assim, falar em consciência humana é desconhecer a história, a escravidão e o sistema.
A professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), em Juazeiro, e integrante do movimento Frente Negra do Velho Chico, Márcia Guena, expõe que “As principais vítimas de homicídio no Brasil são jovens negros, quase 80%. E o que é isso? Nós não somos 80% da população, nós somos 56%. Como é que somos 80% dos que morrem? Como é que as mulheres negras são as principais vítimas de feminicídio? Então, é preciso entender esse processo. Você só entende a partir de uma consciência histórica da compreensão do que foi a escravidão, dos impactos e da permanência da escravidão na manutenção no sistema”.
A fala de Márcia reflete a importância da história, da análise dos dados estatísticos, e ainda mais do mês da Consciência Negra. Nesse sentido, a professora da UNEB em Senhor do Bonfim, Carmélia Miranda, afirma que “É só a gente ver os dados estatísticos para perceber como essa Consciência Negra é contemporânea e necessária. Nós não podemos fugir, nem escamotear essa Consciência Negra (...) precisamos demonstrar, mostrar que no Brasil ainda é gritante a desigualdade racial”.
Diante a desigualdade racial é necessário medidas reparatórias sob a forma de políticas públicas afirmativas voltadas para a população negra. “Uma das mais importantes são as voltadas para educação, como a lei 10639 [de 2003] que obriga o ensino da Cultura africana e afro-brasileira nas escolas, porque ela mexe na base, na formação das pessoas, então a aplicação dessa lei é fundamental”, ressalta Márcia Guena.
Ao concordar com a importância desse ensino nas escolas, Carmélia frisa “Estudar sobre a história e cultura afro-brasileira tem possibilitado a visibilidade, o reconhecimento e o auto reconhecimento da população negra, porque a partir daí ele [o/a estudante] vai conhecer a cultura, a história e as contribuições dos africanos para a cultura brasileira”.
O povo preto na luta por dignidade
Na região do Vale do São Francisco é possível destacar o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate ao Racismo Religioso dos municípios de Juazeiro, com mais de 73% da população negra, e de Petrolina, com quase 70%. Ambos os estatutos foram aprovados em 2020, após mobilização de movimentos negros da região, como a Frente Negra do Velho Chico que vem realizando várias ações ao longo do ano, provocando o poder público para implementar políticas públicas.
As universidades também contribuem para a afirmação do povo negro e luta por seus direitos, a exemplo do projeto de pesquisa da UNEB coordenado por Márcia Guena que colaborou para que as comunidades se reconhecessem enquanto quilombolas e buscassem seus direitos, assim, as comunidades Alagadiço, Barrinha da Conceição e Rodeadouro foram certificadas como quilombos pela Fundação Cultural Palmares. “E outras estão em vias de certificação como Curral Novo, e isso é muito importante, porque são comunidades que guardam tradição, cultura e elementos importantes da população negra”, destaca Márcia.
Devido ao racismo, desvalorização e desigualdade, muitas pessoas negras não reconhecem a sua origem em função da violência secular que o povo negro sofreu e ainda sofre. Em um sistema racista que há mais de três séculos diz que as características físicas dos negros e das negras são feias, que demoniza a religião, que menospreza a cultura, ser negro não era, e infelizmente, em muitas situações ainda não é algo positivo numa sociedade branca. Além da teoria da eugenia, uma pseudociência que visava excluir elementos indesejados da sociedade a fim de "melhorar" geneticamente a população, influenciando leis de antimiscigenação, por exemplo, que vigoraram nos Estados Unidos até a década de 1970, proibindo casamentos interraciais e esterilizando mulheres latinas, negras e indígenas. Por isso, “É perfeitamente compreensível que essa negação fosse até uma estratégia de sobrevivência, e que aos poucos a população negra foi retomando, recuperando sua origem, sua ancestralidade”, explica Márcia Guena.
Sobre se reconhecer negra, Carmélia fala que se assumiu negra a partir dos 25 anos, após pesquisar e estudar sobre a população negra e as comunidades quilombolas, pois a sociedade sempre se distanciou dessa população. E Márcia relata que o seu reconhecimento enquanto mulher negra se deu no confronto ao racismo sofrido aos 20 anos em São Paulo. “Eu participei do Núcleo de Consciência Negra da USP, daí fui entender os processos violentos daquela cidade, da universidade embranquecida, com poucos negros. Pude entender a violência que eu vinha sofrendo e passei a valorizar então alguns elementos da minha estética, e usar uma roupa mais ligada à cultura negra”, relembra Márcia.
Com os relatos dessas mulheres negras, professoras e militantes, percebemos o quanto é importante o Mês da Consciência Negra para debater sobre racismo, direitos das pessoas negras, valorizar a cultura e dar voz a este povo tantas vezes silenciado, despertando o reconhecimento e a consciência negra. O debate gera conhecimento e, só assim, é possível mudar este cenário de racismo e violência que o povo negro vive todos os dias.
Texto: Eixo Educação e Comunicação
Foto: Divulgação