chacina aconteceu em 1929, no município de Campo Formoso/Ba
Por Tenente Cordeiro.
Era uma manhã de domingo, o Cabo Militão se dirigia para ajustar seu animal de montaria. Colocou a sela sobre o animal e enquanto ajustava o equipamento, matutava: “quanta ousadia daqueles bandidos, além de fugirem da cadeia de Bonfim, ainda deixaram um bilhete desaforado para o comandante do destacamento (Capitão José Galdino de Souza), informando que iriam se juntar ao bando de Lampião”, quando seu monologo foi interrompido por um morador local ao falar: “Cabo Militão, lá vem teus companheiros em reforço se aproximando”. Militão observou aquela tropa montada, e inicialmente, até pensou se tratar de reforço, mas dali a pouco constatou que não se tratava da força policial que estavam esperando de Senhor do Bonfim, aquele era o bando de Lampião que imediatamente o cercou, deixando-lhe no centro. Cabo Militão sabia o significado daquele famigerado encontro, e pena que fora surpreendido – ali seria seu encontro com a morte. Era dia 04 de julho de 1929, no povoado de Brejão da Caatinga no município de Campo Formoso/Ba.
Nos dias que antecederam o citado encontro, que resultou numa das baixas mais cruéis da PMBA, na luta contra o cangaço (embora pouco comentada e pouco conhecida pela instituição), aconteceu uma fuga de presos da cadeia pública da cidade de Senhor do Bonfim. Foi uma fuga bastante significativa, sobretudo pelo deboche dos criminosos em deixar um bilhete escrito ao comandante do destacamento, contendo certos impropérios e ameaças de que se uniriam ao bando de Lampião. Naquela altura, o cangaceiro Virgulino Ferreira, com sua malta, constituía um raio de temor e desassossego aos moradores daquelas plagas; uma pedra no sapato do Capitão José Galdino de Souza, figura audaz e bastante operante, a quem Lampião nutria ódio mortal. O dito oficial, resolveu mandar efetivo policial para capturar os foragidos; havia informação de que eles teriam dado por lado do Brejão de Dentro, hoje conhecido como Brejão da Caatinga.
Segundo o escritor bonfinense: Oleone Coelho Fontes, autor do livro “Lampião na Bahia”, os cabos de esquadra, Militão e João Rosalvo, partiram com mais oito soldados da sede do quartel para o interior de Campo Formoso, e chegaram no susodito povoado no dia 03 de julho, e lá pernoitaram recebendo guarida do morador: Alfredo Monteiro da Silva. Ao amanhecer do dia 04 de julho, a tropa se dividiu, e o Cabo João Rosalvo, juntamente com os soldados: Josino Bispo Silva, Euclides Ponciano da Conceição, Germiniano da Silva Duarte e Torquato Alves de Souza, partiram por outro flanco em busca dos fugitivos; não imaginavam que a cabroeira do famigerado cangaceiro estivesse tão próxima. Tal fração de tropa, certamente se encontrava em marcha pelas serras características do Piemonte Norte do Itapicuru, quando Lampião atacou o povoado de Itumirim (atual Distrito de Juacema), pertencente ao município de Jaguarari, no dia 29 de junho. A tropa estava muito longe de Bonfim e de Campo Formoso para receber tais informações. Os cabos estavam alheios aos acontecimentos recentes.
O Cabo João Rosalvo partiu com sua fração de tropa descendo os grotões objetivando prender os fugitivos, razão daquela missão. Não poderiam supor que o bando de Lampião estivesse nos arredores.
O Cabo Militão permaneceu no povoado bem tranquilo com seu efetivo (ele e mais quatro soldados), sem a devida vigilância, peculiar aos militares. Até mesmo as armas de fogo do efetivo estavam guardadas no interior da residência de Alfredo Monteiro. Aqui é interessante ressaltar o fator “surpresa”, utilizado pelo bando de Lampião, que impôs ultrajantes derrotadas com lastimosas baixas de policiais. Para o fator “surpresa”, é preciso vigilância e informação; a vigilância é própria da tropa, mas a informação, naqueles tempos, era mais aproveitada pelos cangaceiros via “coiteiros”.
No livro “Particularidades Históricas e Pitorescas da PMBA”, do celebre Cel PM Antônio Medeiros de Azevedo, é apresentado ao leitor um panorama da formação militar na PMBA, inclusive a criação da Villa Militar do Bonfim (1935), como Centro de Instrução Militar e a implantação dos cursos de formação de oficiais combatentes e auxiliares no ano de 1936, além da estruturação da formação de praças. Nota-se no capítulo: “Compromisso de Recruta”, o quão simplista, do ponto de vista técnico, era o ato de “sentar praça”, que inclusive em situações de urgência, nem mesmo juramento se fazia. Na pedagogia da formação das tropas e forças de segurança, sobrava em coragem o que faltava em técnica e treinamento de combate. É isso que nos deixa transparecer o Cel PM Antônio Medeiros de Azevedo, prócere da PMBA.
Guardado o lapso temporal, entre o Movimento de Canudos e a luta contra a malta de Lampião, se observa na obra “Os Sertões”, no dizer de Euclides da Cunha, quando da criação do 5º Corpo de Polícia Baiana, apelidado pelo próprio autor de “Batalhão de Jagunços”, que a formação daquela tropa foi constituída sem nenhum protocolo, fundado na bravura dos sertanejos dos arredores do vale do Vale do São Francisco, “não era um batalhão de linha”, foi “o único que se talhara pelas condições da campanha”. Assim se observa quão deficitária eram as tropas em formação técnica, sobretudo no combate em caatinga, bioma que por si só cobra pesadas condições de adaptação.
Virgulino Ferreira, após atacar Itumirim e atear fogo na estação de trem, destruindo inclusive o aparelho de telégrafo, para evitar comunicações que pudessem dar ciência da presença dos facínoras naquela localidade, fugou no sentido da imponente Serra dos Morgados; uma imensa elevação que marca basicamente o início da Chapada Diamantina, o último complexo de serras até entrar no Vale do Rio São Francisco. A Serra dos Morgados se estende por dezenas de quilômetros, rodeados por terrenos acidentados e diversos grotões, faz parte do mesmo filão sobre o qual estão as cidades de Senhor do Bonfim, Campo Formoso, Jacobina, Jaguarari etc.
O bando atravessou a Serra dos Morgados e adentraram nas terras pertencentes ao município de Campo Formoso; sempre sequestrando guias, obrigando moradores a darem suporte, alimárias, e, sobretudo, informações acerca do terreno e da presença policial. Tais informações geraram a figura do “coiteiro”, tão lastimada pelas volantes policiais. Lampião estava sempre dois passos à frente, em virtude dessas informações prestadas pelos “coiteiros”. Isso possibilitou ao bando dizimar um número elevado de policiais, a exemplo do morticínio que aconteceria naquela manhã de domingo em Brejão da Caatinga.
A figura do “coiteiro” é bastante discutida entre estudiosos do cangaço. Mas aqui, acreditamos, que a pessoa comum do sertanejo, prestava informações aos cangaceiros, mais por medo que por colaboração com a turba criminosa. Principalmente pelo imenso terror espalhado (sertão adentro), das atrocidades cometidas por Virgulino Ferreira e seus subordinados famígeros.
Segundo Oleone Coelho, horas antes de entrar no povoado de Brejão da Caatinga, Lampião encontrou na estrada, o senhor Alexandre Alfredo de Miranda, juntamente com sua família, e indagou ao transeunte sobre a “presença de macacos no povoado”, e este respondeu que ali (Brejão da Caatinga), pernoitaram 03 forças volantes. Se sabe que duas volantes pernoitaram no povoado, talvez, segundo o autor, o transeunte assim disse para desmotivar a ida da malta até aquela localidade. O fato é que o cangaceiro, por volta das 10h00, se aproximou do povoado com seu bando, e de assalto surpreendeu o cabo Militão, que inocentemente, de relance, imaginou ser um reforço enviado pelo Cap Galdino. É que volantes e cangaceiros se pareciam por demais. Em diversas passagens, os cangaceiros são confundidos com volantes policiais, a exemplo do assalto de Lampião à cidade de Queimadas no dia 22 de dezembro 1929, o qual resultou na morte de sete soldados da polícia baiana. Naquela ocasião, quando o bando entrou na cidade, os moradores imaginavam se tratar de uma volante pernambucana. Esta é uma anotação importante: volantes e cangaceiros eram parecidos.
O escritor Leonardo Mota, em sua obra: “Nos Tempos de Lampião”, faz um relato do encontro de Lampião com o Cabo Militão: “De súbito, o troço aparece. Num ápice, saltam das selas Lampião, Volta Seca, Ezequiel, Pai Velho, Corisco, Arvoredo, Moderno, Esperança, Moirão, Gato, Pernambucano e Labareda. Virgulino já está intimando o Cabo Militão(...)”. Acredito que um homem sabe quando chega sua vez, e nessas horas as reações são as mais diversas. Nos conta o ilustre escritor, que o chefe da malta, olhando para o indefeso e desramado Militão, disse: “Se prepare, cabra, se prepare pra apanhar!”. Intrépido, o cabo fitou no cangaceiro e retrucou: “Pra apanhar não, que em homem não se dá, homem se mata!”. Uma atitude moralmente relevante e de grandeza de espirito diante da morte, digna de um genuíno policial – é assim que se traduz o juramento policial diante da bandeira, “mesmo com risco da própria vida”.
Então Lampião, incontinente, disse ao cabo: “apois, então, tire a cartucheira, que é pra não mela de sangue!”, e nisso Volta Seca – figura embrutecida e responsável por dezenas de execuções de policiais, a quem Lampião recrutou ainda aos 15 anos de idade, na localidade de Guloso, onde este era conhecido pela alcunha de Bosta-Seca (ou Estrume-Seco). Se pudéssemos relatar as perversidades desse adolescente, as páginas verteriam sangue –, sorrateiramente se aproxima e dispara o parabellum na altura do ouvido do militar. O Cabo Militão tomba ao chão... O sague rega o solo. O estampido anuncia o desespero das pessoas do povoado. Um dos soldados estava num boteco próximo; os demais estavam dentro da residência de Alfredo Monteiro e saíram correndo para fora da residência, a fim de saberem o que estava acontecendo, uma vez presenciado as figuras da horda assassina, tentaram retornar e receberam a refrega de projéteis, cortando-lhes os corpos. Oleone Coelho relata que um dos soldados estava escrevendo uma carta à sua família, e morreu com a caneta na mão. Foram surpreendidos e assim perderam suas vidas, com as armas guardadas, não tiveram a chance de oferecer resistência aos facínoras.
O dono da residência, sob a ameaça de não mais dar apoio a “macacos”, quando indagou a Lampião sobre o que fazer com os corpos, foi-lhe dito: “Querendo, enterre; não querendo, deixe os urubus comer”. E dito isso chuta o corpo do Cabo Militão, e tirando-lhe as divisas, presenteiam seus cangaceiros. Após ser advertido por Alfredo Monteiro, de que outra força estaria para chegar em Brejão da Caatinga, Lampião desiste de festejar e regalar-se no povoado; enfurecido, parte dali, mas antes percebeu que um dos soldados ainda respirava de maneira ofegante, e disse: “o diabo do macaco ainda está se mexendo? Macaco mexeu quer chumbo”, e montado mesmo dispara contra a cabeça do militar, “que arranca a parte frontal” do crânio. Assim se arribam do povoado, mandando que enterre todos em uma cova rasa. Então Alfredo Monteiro, “de olhos marejando”, corre a tanger os cachorros que lambiam o sangue das vítimas, e providencia o sepultamento dos corpos.
Foi assassinado naquela manhã, segundo Leonardo Mota: Cabo Antônio Militão da Silva e os Soldados: Pedro Santana, Cecílio Benedito, Manoel Luís de França e Leocádio Francisco da Silva. Buscavam fugitivos da cadeia pública de Bonfim, e encontraram a morte; Brejão da Caatinga seria o ponto de junção das tropas, entretanto, com o fatal acontecimento, tornou-se um dos primeiros morticínios de policiais executados por Lampião na Bahia. Ainda revela, Leonardo Mota, que o corpo do “Cabo Militão tinha os olhos esbugalhados para o céu, como a indicar que aquele, cuja firmeza de olhar não se curvara ante a crueldade vilã do Rei do Cangaço, também era capaz de fitar o sol, o grande sol flamejante dos sertões!”. Mas como dizia, Emily Brontë, em seu romance angustiante: O Morro dos Ventos Uivantes, “... a traição e a violência são lanças de ponta dupla...”, a hora do cangaceiro Virgulino também se selaria tempos depois, sendo tragado com os mesmos aprumos de crueldades em 27 de julho de 1938, na fazenda Angicos, no Estado de Sergipe. Os que tantas vezes surpreenderam, foram surpreendidos com tanta ferocidade que até mesmo suas cabeças foram decapitadas.
Depois dessa chacina, outra ainda mais cruel aconteceria naquele mesmo ano, no mês de dezembro, na cidade de Queimadas, que em outra oportunidade trataremos. Alguns estudiosos, entendem que o elevado grau de violência praticado por Lampião contra policiais na Bahia, foi devido à baixa causada pela volante do tenente Odonel Francisco da Silva, no dia 07 de janeiro de 1929, no Distrito de Abóbora (à época pertencente ao município de Jaguarari). Naquela ocasião, parte do bando de Lampião foi surpreendida quando estava em uma farra naquele lugarejo. No confronto, faleceu o cangaceiro denominado de “Mergulhão”, homem de elevada confiança e estima dentro do grupo de Lampião. Aquela foi uma oportunidade perdida, pois, segundo Oleone Coelho, parte dos componentes do bando encontravam-se ébrios, inclusive Lampião. Talvez, sendo o facínora abatido naquela ocasião, a história poderia ser outra. Talvez! Pois, a história da violência, tão bem acompanhada e vivida por nós policiais, revela-nos que, quando um marginal se vai, outro logo assume o antigo posto. O fato é que Lampião, com a morte de Mergulhão pelas forças da Bahia, tornou-se ainda mais animalesco e sicário. Essa é a explicação que muitos dão para as chacinas de 1929, em especial, a do Brejão da Caatinga e de Queimadas. A nós, refutando qualquer anacronismo, não comungamos com a ideia de “banditismo social”, ou revanchismo por parte dos cangaceiros para justificar as execuções, pois se assim fosse, como se justificaria as atrocidades cometidas contra os civis interioranos? Reflitam.
Todavia, o cangaço foi um fenômeno social do Nordeste brasileiro. Assim como o messianismo, o coronelismo e o banditismo, que cobriam os sertões de jagunçadas, cangaceiros e figuras messiânicas – numa tentativa feroz de sobrevivência. A forte concentração fundiária e o abandono social aqui verificados, produziram tais fenômenos cujas manifestações se traduziram em violência e opressão ao sertanejo desafortunado, sobretudo naquele período do nascimento e firmamento da República Brasileira. É sabido que aquela configuração social, política, cultural e religiosa do Nordeste, produziram os citados fenômenos. Eis uma das razões pela qual não faz sentido, a análise fria, seca e destacada, se Lampião foi bandido ou herói. Mas o cangaço, assim como as figuras dos coronéis e dos místicos, não se resume a essas particularidades. Imagine responder, à luz do movimento de Canudos, “se Antônio Conselheiro era profeta ou lunático”? Perdemos a compreensão holística ao reduzir a análise com tais indagações, e caímos no simplório. Seria como assim como indagar o vastíssimo Gilberto Freyre sobre a “cordialidade” do brasileiro, ou ainda sobre a “democracia racial”. Não é justo. É tentar pesar “arrobas” com “balança de precisão”.
Uma gama de intelectuais e amantes da cultura popular costumam cantar o cangaço e a figura de Lampião – ele faz parte da História. E quanto às instituições militares, cantam seus feitos e seus bravos componentes, cujo sangue “regou nosso solo”? Quantos monumentos e produções são feitas pela PMBA, para memorar a infinidade de policiais que perderam suas vidas no combate ao cangaço? Precisamos urgentemente debater e louvar, também, como parte constitutiva da História, os bravos policiais militares que tombaram no combate ao cangaço. Sobre o morticínio de Brejão da Caatinga, ainda não fizemos as devidas homenagens.
Para finalizar, registramos que o atual 3º BEIC (Batalhão de Ensino, Instrução e Capacitação), cujas origens remetem ao movimento de Canudos, pois somos aquele 5º Corpo de Polícia Baiano, salientado por Euclides da Cunha, também tivemos participação no combate ao cangaço. O 5º Corpo de Polícia mudou sua nomenclatura diversas vezes. Em 1935, quando foi transferido de Salvador para a cidade de Senhor do Bonfim, a Unidade se chamava: 3º Batalhão de Caçadores. A chegada do Batalhão à cidade de Sr. do Bonfim, foi parte de uma sistematização de combate ao terror causado por Lampião e seu bando. Com a morte do cangaceiro Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto), no ano 1940, e com praticamente a extinção do cangaço em terras baianas, o Batalhão de Caçadores foi transferido para a cidade de Juazeiro em definitivo, em 1951.