José Gonçalves |
Em dois de
dezembro de 1902, lá se vão 110 anos, vinha a lume, no Rio de Janeiro, pela Laemmert
& C. Editores, um dos colossos das letras nacionais: Os Sertões (Campanha de Canudos), do escritor, jornalista, militar
e engenheiro Euclides Pimenta da Cunha (1866-1909). Naquele mesmo ano, mais
três obras importantes despontavam no cenário da literatura nacional e
estrangeira, sendo elas: Canaã, de
Graça Aranha (Brasil), A Ceia dos
Cardeais, de Júlio Dantas (Portugal) e O
Cão dos Baskerville, de Conan Doyle (Inglaterra).
Canaã retrata a saga dos imigrantes germânicos
numa colônia da então província do Espírito Santo. Caracterizado pelo confronto
entre diferentes visões de mundo, onde avulta a violência do preconceito
racial, o romance tem como personagens principais os jovens Milkau e Lentz, que
vivem o desafio de construir uma vida nova em terra estrangeira – a terra da
promissão. Trata-se de obra importantíssima para a compreensão da realidade
brasileira, naquele principio de século.
A Ceia dos Cardeais é um clássico
da dramaturgia mundial. A peça tem como cenário uma luxuosa sala no Vaticano,
onde, durante a ceia da noite, três cardeais já velhinhos, depois de algumas
rusgas, lamentam o peso do tempo e relembram os amores do passado. Traduzida
para um sem-número de idiomas, a obra ainda conquista corações em todo o mundo.
O Cão dos Baskerville é, talvez, a
melhor história policial que já se escreveu até os dias de hoje. Na trama, sir
Charles Baskerville é encontrado morto em circunstâncias suspeitas, havendo, ao
lado do seu corpo, pegadas ainda frescas de um cão monstruoso. Apôs o fato, sir
Henry, o único herdeiro da prole, passa a sofrer estranhas e inexplicáveis ameaças.
Reza uma lenda que todos os varões da família Baskerville haverão de perecer
sob as garras letais de um cão infernal. Para solucionar o enigma, é convocado
ninguém menos que o famoso e experimentado detetive Sherlock Holmes. Permeado
de vaivens, mistérios e suspenses, o
livro é um dos mais populares no gênero, com inúmeras adaptações para as telas
de cinema.
Todavia, em que
pese o fascínio que tais obras exerceram sobre os mais variados públicos, no
decurso de onze décadas, nenhuma delas conseguiu jamais aproximar-se do valor,
da grandeza e da majestade d’Os Sertões,
denominado por seu autor como livro
vingador.
Os últimos meses
que antecederam o lançamento d’Os Sertões,
todavia, foram de profunda frustração para o escritor, nascido em Cantagalo,
antiga província do Rio de Janeiro. Em 19 de outubro de 1902, escrevia Euclides
da Cunha ao amigo Escobar: “Tenho passado mal. Chamaste-me atenção para vários
descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com mais cuidado e fiquei apavorado. Já
não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um
acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente... Um horror! Quem
sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro?”
O jornalista Viriato
Correia, que entrevistou o autor em agosto de 1909, narrou, na revista Ilustração Brasileira, o que dele ouviu
sobre a torturante crise que lhe abateu os ânimos no início da sua carreira
literária: “Ao chegar à tipografia (...), abrindo ao acaso um volume, lá
encontrava um com uma crase intrusa, adiante uma vírgula de mais, etc., etc.
(...) a ponta de canivete (...) raspou oitenta erros. Foram cento e sessenta
mil emendas! [levando-se em conta os dois mil exemplares da 1ª edição] (...) Um
estranho pavor se apoderou de Euclides. Tinha certeza de que a obra ia ser um desastre.
E tocou-se para Lorena”, lá chegando oito dias depois. Ali, ainda segundo Correia,
encontrou duas cartas do editor. “Abriu uma por acaso, por felicidade era a
segunda (...) o editor dizia que estava assombrado com a venda do livro (...).
A outra carta, a primeira, era esmagadora. O editor confessava-se-lhe
redondamente arrependido de tê-lo editado (...) – Se eu tivesse lido essa carta
em primeiro lugar, parece que morreria, conclui Euclides, sorrindo.”
Surpreendentemente,
o livro, que tanta intranquilidade trouxera ao seu autor, acabou por tornar-se
o maior espetáculo literário do início do século XX e o primeiro best-seller da história da literatura
brasileira, obtendo estrondoso sucesso de crítica e de venda.
Em artigo
publicado no jornal Correio da Manhã,
um dia após o advento d’Os Sertões, o
consagrado escritor José Veríssimo, o maior e mais mordaz crítico literário de
então, não economizava louvores e encômios à obra em apreço, no que foi seguido
por outros insignes resenhistas, a exemplo de Araripe Júnior, Moreira
Guimarães, Coelho Neto e Sílvio Romero. Este último, que, aliás, não era dado a
elogios, elevou o livro de Euclides da Cunha ao patamar das coisas sagradas,
admitindo-se-lhe a possibilidade de culto e veneração: “(...) deixai que exerça
livremente meu direito de admirar. Também sei queimar gostosamente bagas de
incenso, quando o altar não está vazio e nele existe realmente o que se deva
venerar. Para tanto, no caso, não hei mister improvisar; basta-me abrir o vosso
livro e ler nele como se lê nos missais nas cerimônias do culto”.
Dois meses após o
aparecimento da enigmática obra, e contrariando as expectativas do primeiro
momento, comunicava Euclides ao pai: “Recebi uma carta do Laemmert
declarando-me que é obrigado a apressar a 2ª edição (...) dos Sertões para
atender a pedidos que lhe chegam (...) – e aos quais não pode satisfazer por
estar esgotada a 1ª. Isto em dois meses”.
Era a consagração
do autor e da obra.
Dividido em três partes, a saber: a Terra, o Homem e
a Luta, o livro ora estudado empreende ampla e profunda abordagem acerca da
geografia do Nordeste e dos tipos humanos que povoam essa parte do Brasil,
culminando com o conflito entre o Exército Brasileiro e os heroicos habitantes
de Canudos, comunidade liderada pelo beato cearense Antônio Vicente Mendes
Maciel, o Conselheiro.
Tem o livro o
mérito de mediar o difícil e doloroso diálogo entre o “Brasil real e o Brasil
oficial” – no dizer de Machado de Assis – despertando
a atenção das elites políticas, econômicas e culturais para os inumeráveis
problemas que faziam (e fazem) desta uma nação dividida entre o progresso do
litoral e o atraso do interior. Pela primeira vez, no Brasil, uma obra de
literatura assumia a discussão sobre os reais problemas do país e lançava as
bases para a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual.
Escrito nos raros momentos de intervalo, enquanto seu criador monitorava
a reconstrução de ponte metálica na cidade paulista de São José do Rio Pardo, Os Sertões, por força do seu estilo único
e sui generis (em que convivem no
mesmo espaço história, ficção, poesia, literatura, etc.) é considerado por
muitos estudiosos como livro inclassificável,
não sendo possível circunscrevê-lo em nenhum dos gêneros literários até aqui
conhecidos. “Não há modelo que se lhe possa comparar com exatidão, fato, aliás,
que se passa com a maioria das obras-primas da humanidade, cada uma
realizando-se segundo lei que é a sua própria e criando seu próprio padrão
estrutural”, pontifica Afrânio Coutinho.
Para o já mencionado escritor José Veríssimo, “O livro (...) do Sr. Euclides da Cunha, é
ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um
etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um
historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista que sabe ver
e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato
do homem (...)”. Assim, o ilustre homem de letras de origem paraense não
só resumia o conteúdo d’Os Sertões,
como também dava a dimensão exata da obra e do autor.
Tamanha importância detém Os Sertões que por cerca de meio século foi ele a principal referência
no tocante à história de Canudos, embora existissem outras fontes valiosas
sobre o assunto, muitas das quais publicadas antes mesmo do surgimento do livro vingador. Essa quase hegemonia, se
por um lado obliterou as demais literaturas sobre a matéria, por outro conferiu
maior status ao episódio tido no sertão
da Bahia, no final do século XIX, levando-o, inclusive, a transpor as fronteiras
nacionais e tornar-se conhecido em outras partes do orbe.
Na edição de 23 de novembro de 1994, convidou a
revista Veja um grupo de 15 renomados
intelectuais, com o fito de escolher a obra que fosse o “cânone brasileiro”. Merecidamente,
foi eleito Os Sertões, em primeiro lugar. Não
é descabida, portando, a opinião dos que defendem ter o escritor fluminense
exercido papel fundador na cultura brasileira, a exemplo de Cervantes na
Espanha, Goethe na Alemanha, Alighieri na Itália e Camões em Portugal. Traduzido para
13 idiomas e contando, em terras brasileiras, com mais de 80 edições, o livro é
um dos mais lidos e difundidos no Brasil e no exterior.
Parafraseando um mestre da contemporaneidade, Celso
Furtado, diríamos que se 110 anos depois “a obra de Euclides permanece tão
atual é por seu caráter pioneiro no reconhecimento da formação de um mundo em
construção (...). Os problemas que hoje nos angustiam – a fome, o
analfabetismo, o latifundismo – são substrato da realidade por ele descrita. O
que nos leva a reconhecer que ele captou, avant
la lettre, a resistência às mudanças em nosso país”.
Senhor do Bonfim, novembro de 2012.
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