quarta-feira, 28 de novembro de 2012

110 ANOS DE UM CLÁSSICO: OS SERTÕES, DE EUCLIDES DA CUNHA

  Por> José Gonçalves do Nascimento
José Gonçalves

Em dois de dezembro de 1902, lá se vão 110 anos, vinha a lume, no Rio de Janeiro, pela Laemmert & C. Editores, um dos colossos das letras nacionais: Os Sertões (Campanha de Canudos), do escritor, jornalista, militar e engenheiro Euclides Pimenta da Cunha (1866-1909). Naquele mesmo ano, mais três obras importantes despontavam no cenário da literatura nacional e estrangeira, sendo elas: Canaã, de Graça Aranha (Brasil), A Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas (Portugal) e O Cão dos Baskerville, de Conan Doyle (Inglaterra).

Canaã retrata a saga dos imigrantes germânicos numa colônia da então província do Espírito Santo. Caracterizado pelo confronto entre diferentes visões de mundo, onde avulta a violência do preconceito racial, o romance tem como personagens principais os jovens Milkau e Lentz, que vivem o desafio de construir uma vida nova em terra estrangeira – a terra da promissão. Trata-se de obra importantíssima para a compreensão da realidade brasileira, naquele principio de século.

A Ceia dos Cardeais é um clássico da dramaturgia mundial. A peça tem como cenário uma luxuosa sala no Vaticano, onde, durante a ceia da noite, três cardeais já velhinhos, depois de algumas rusgas, lamentam o peso do tempo e relembram os amores do passado. Traduzida para um sem-número de idiomas, a obra ainda conquista corações em todo o mundo.

O Cão dos Baskerville é, talvez, a melhor história policial que já se escreveu até os dias de hoje. Na trama, sir Charles Baskerville é encontrado morto em circunstâncias suspeitas, havendo, ao lado do seu corpo, pegadas ainda frescas de um cão monstruoso. Apôs o fato, sir Henry, o único herdeiro da prole, passa a sofrer estranhas e inexplicáveis ameaças. Reza uma lenda que todos os varões da família Baskerville haverão de perecer sob as garras letais de um cão infernal. Para solucionar o enigma, é convocado ninguém menos que o famoso e experimentado detetive Sherlock Holmes. Permeado de vaivens, mistérios e suspenses, o livro é um dos mais populares no gênero, com inúmeras adaptações para as telas de cinema.

Todavia, em que pese o fascínio que tais obras exerceram sobre os mais variados públicos, no decurso de onze décadas, nenhuma delas conseguiu jamais aproximar-se do valor, da grandeza e da majestade d’Os Sertões, denominado por seu autor como livro vingador.

Os últimos meses que antecederam o lançamento d’Os Sertões, todavia, foram de profunda frustração para o escritor, nascido em Cantagalo, antiga província do Rio de Janeiro. Em 19 de outubro de 1902, escrevia Euclides da Cunha ao amigo Escobar: “Tenho passado mal. Chamaste-me atenção para vários descuidos dos meus Sertões; fui lê-lo com mais cuidado e fiquei apavorado. Já não tenho coragem de o abrir mais. Em cada página o meu olhar fisga um erro, um acento importuno, uma vírgula vagabunda, um (;) impertinente... Um horror! Quem sabe se isto não irá destruir todo o valor daquele pobre e estremecido livro?”

O jornalista Viriato Correia, que entrevistou o autor em agosto de 1909, narrou, na revista Ilustração Brasileira, o que dele ouviu sobre a torturante crise que lhe abateu os ânimos no início da sua carreira literária: “Ao chegar à tipografia (...), abrindo ao acaso um volume, lá encontrava um com uma crase intrusa, adiante uma vírgula de mais, etc., etc. (...) a ponta de canivete (...) raspou oitenta erros. Foram cento e sessenta mil emendas! [levando-se em conta os dois mil exemplares da 1ª edição] (...) Um estranho pavor se apoderou de Euclides. Tinha certeza de que a obra ia ser um desastre. E tocou-se para Lorena”, lá chegando oito dias depois. Ali, ainda segundo Correia, encontrou duas cartas do editor. “Abriu uma por acaso, por felicidade era a segunda (...) o editor dizia que estava assombrado com a venda do livro (...). A outra carta, a primeira, era esmagadora. O editor confessava-se-lhe redondamente arrependido de tê-lo editado (...) – Se eu tivesse lido essa carta em primeiro lugar, parece que morreria, conclui Euclides, sorrindo.”

Surpreendentemente, o livro, que tanta intranquilidade trouxera ao seu autor, acabou por tornar-se o maior espetáculo literário do início do século XX e o primeiro best-seller da história da literatura brasileira, obtendo estrondoso sucesso de crítica e de venda.

Em artigo publicado no jornal Correio da Manhã, um dia após o advento d’Os Sertões, o consagrado escritor José Veríssimo, o maior e mais mordaz crítico literário de então, não economizava louvores e encômios à obra em apreço, no que foi seguido por outros insignes resenhistas, a exemplo de Araripe Júnior, Moreira Guimarães, Coelho Neto e Sílvio Romero. Este último, que, aliás, não era dado a elogios, elevou o livro de Euclides da Cunha ao patamar das coisas sagradas, admitindo-se-lhe a possibilidade de culto e veneração: “(...) deixai que exerça livremente meu direito de admirar. Também sei queimar gostosamente bagas de incenso, quando o altar não está vazio e nele existe realmente o que se deva venerar. Para tanto, no caso, não hei mister improvisar; basta-me abrir o vosso livro e ler nele como se lê nos missais nas cerimônias do culto”.

Dois meses após o aparecimento da enigmática obra, e contrariando as expectativas do primeiro momento, comunicava Euclides ao pai: “Recebi uma carta do Laemmert declarando-me que é obrigado a apressar a 2ª edição (...) dos Sertões para atender a pedidos que lhe chegam (...) – e aos quais não pode satisfazer por estar esgotada a 1ª. Isto em dois meses”.

Era a consagração do autor e da obra.

Dividido em três partes, a saber: a Terra, o Homem e a Luta, o livro ora estudado empreende ampla e profunda abordagem acerca da geografia do Nordeste e dos tipos humanos que povoam essa parte do Brasil, culminando com o conflito entre o Exército Brasileiro e os heroicos habitantes de Canudos, comunidade liderada pelo beato cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.

Tem o livro o mérito de mediar o difícil e doloroso diálogo entre o “Brasil real e o Brasil oficial” – no dizer de Machado de Assis – despertando a atenção das elites políticas, econômicas e culturais para os inumeráveis problemas que faziam (e fazem) desta uma nação dividida entre o progresso do litoral e o atraso do interior. Pela primeira vez, no Brasil, uma obra de literatura assumia a discussão sobre os reais problemas do país e lançava as bases para a construção de uma sociedade mais justa e menos desigual.

Escrito nos raros momentos de intervalo, enquanto seu criador monitorava a reconstrução de ponte metálica na cidade paulista de São José do Rio Pardo, Os Sertões, por força do seu estilo único e sui generis (em que convivem no mesmo espaço história, ficção, poesia, literatura, etc.) é considerado por muitos estudiosos como livro inclassificável, não sendo possível circunscrevê-lo em nenhum dos gêneros literários até aqui conhecidos. “Não há modelo que se lhe possa comparar com exatidão, fato, aliás, que se passa com a maioria das obras-primas da humanidade, cada uma realizando-se segundo lei que é a sua própria e criando seu próprio padrão estrutural”, pontifica Afrânio Coutinho.

Para o já mencionado escritor José Veríssimo, “O livro (...) do Sr. Euclides da Cunha, é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um geógrafo, um geólogo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista que sabe ver e descrever, que vibra e sente tanto aos aspectos da natureza, como ao contato do homem (...)”. Assim, o ilustre homem de letras de origem paraense não só resumia o conteúdo d’Os Sertões, como também dava a dimensão exata da obra e do autor.

Tamanha importância detém Os Sertões que por cerca de meio século foi ele a principal referência no tocante à história de Canudos, embora existissem outras fontes valiosas sobre o assunto, muitas das quais publicadas antes mesmo do surgimento do livro vingador. Essa quase hegemonia, se por um lado obliterou as demais literaturas sobre a matéria, por outro conferiu maior status ao episódio tido no sertão da Bahia, no final do século XIX, levando-o, inclusive, a transpor as fronteiras nacionais e tornar-se conhecido em outras partes do orbe.

Na edição de 23 de novembro de 1994, convidou a revista Veja um grupo de 15 renomados intelectuais, com o fito de escolher a obra que fosse o “cânone brasileiro”. Merecidamente, foi eleito Os Sertões, em primeiro lugar. Não é descabida, portando, a opinião dos que defendem ter o escritor fluminense exercido papel fundador na cultura brasileira, a exemplo de Cervantes na Espanha, Goethe na Alemanha, Alighieri na Itália e Camões em Portugal. Traduzido para 13 idiomas e contando, em terras brasileiras, com mais de 80 edições, o livro é um dos mais lidos e difundidos no Brasil e no exterior.

Parafraseando um mestre da contemporaneidade, Celso Furtado, diríamos que se 110 anos depois “a obra de Euclides permanece tão atual é por seu caráter pioneiro no reconhecimento da formação de um mundo em construção (...). Os problemas que hoje nos angustiam – a fome, o analfabetismo, o latifundismo – são substrato da realidade por ele descrita. O que nos leva a reconhecer que ele captou, avant la lettre, a resistência às mudanças em nosso país”.

Senhor do Bonfim, novembro de 2012.

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