quinta-feira, 23 de julho de 2015

ANCESTRALIDADE: A FORÇA DOS MAIS EXPERIENTES E A IDENTIDADE DAS CULTURAS

Paulo Machado

Quatro da manhã, ainda escuro e frio, tomei a BR em direção à capital, em missão inesperada. Entre uma chuva e outra, à medida que as cidades e povoados avançavam, com preguiça de acordar, enroscado em meu bom e velho paletó chuviscado, remoía um comentário   que lera havia pouco tempo, no facebook: “políticos velhos e enferrujados...” Era um jovem que diante da proposta de nomes para assumirem a direção do município, nas próximas eleições, a todos nos jogava no ferro velho, defendendo que o próximo prefeito deveria ser alguém “novo”. Fitando uma linha do horizonte que se confundia com a escuridão do tempo, me fazia algumas perguntas: “O que é ser novo, na verdade? É ter pouca idade? É nunca ter sido nada? É não ter passado pelo crivo do conhecimento da realidade? Qual o lugar da experiência, da aprendizagem e do conhecimento da realidade na sociedade contemporânea?”. Nas últimas décadas dissemina-se a visão dos mais velhos como ultrapassados, inúteis ou improdutivos, portadores de valores antiquados. É uma idéia tão moderna quanto contrária ao que foi construído em grande parte das culturas mais antigas do planeta, que geralmente associam longevidade com sabedoria.

Um rápido olhar nas diversas culturas, principalmente nas culturas em que a nossa brasilidade se enraíza, nos mostra povos que se tornaram fortes por não abrirem mão da “ciência, da sabedoria e do conhecimento dos mais velhos”. Exemplos aí estão de sobra:

Do ponto de vista administrativo-religioso, Pedro foi escolhido primaz dos apóstolos pela respeitabilidade e competência dos seus cabelos brancos, sendo o mais velho dos doze apóstolos; na Igreja Primitiva ocupavam importantes funções no cuidado das comunidades, OS PRESBÍTEROS, palavra grega que significa “OS MAIS VELHOS” e aos quais há respeitosas referências: Ser presbítero é  um ofício plural exercido por homens, com ação no âmbito da própria igreja, a qual reconhece aqueles a quem Deus escolheu, debaixo de muita oração e jejuns (At 14.23). Diz o sábio: “Não havendo sábia direção, cai o povo, mas na multidão de conselheiros há segurança.” (Pv 11.14); Juntamente com os apóstolos tinham os presbíteros a responsabilidade de analisar e deliberar sobre questões doutrinárias (At 15.2, 4, 6, 22), emitindo documento sobre a decisão tomada, para orientação da igreja (At 15.23; 16.4); O apóstolo Paulo dedicou atenção especial a eles, pois os via como líderes e pastores do rebanho de Deus (At 20.17, 28; 21.17).

A cultura ancestral sul-americana nos mostra que no continente há uma  valorização dos saberes tradicionais, aliada ao  respeito e admiração pelos idosos.  Tal se encontra presente  na fala e na atitude de crianças, jovens e adultos. Não há exatamente essa separação explícita entre passado e presente, os ancestrais falecidos são consultados nas cerimônias espirituais, são parte da construção e da identidade de cada índio e a razão de ainda estarem vivos como povos e culturas.
Reportagem de “Carta Capital” nos fala de  um jovem indígena colombiano para quem: “Os anciões são como bibliotecas ambulantes. Se morrem, morre todo o conhecimento que guardam. E se nós jovens não buscamos e aprendemos com os mais velhos esse conhecimento se perde, é como queimar uma biblioteca inteira”. E nós, quantas bibliotecas não estaremos queimando diariamente, ao relegarmos ao nada os que acumularam experiências e competências nos espaços onde vivem?

Em “Memória e Sociedade: lembranças de velhos”, a antropóloga Ecléa Bosi apresenta uma bela reflexão: “O ancião não sonha quando rememora: desempenha uma função para a qual está maduro, a religiosa função de unir o começo e o fim, de tranquilizar as águas revoltas do presente alargando suas margens [...]. O vínculo com outra época, a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e uma ocasião de mostrar sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressonância.” (2004, p. 22).

E a cultura africana? O respeito aos mais velhos, como portadores das informações, dos segredos, dos processos de conhecimento,  como aqueles que têm a “palavra a ser dita” e que são personificados na clássica figura do “Preto Velho”. Impossível pensar na identidade de um povo, de uma cultura, sem abrir espaço àqueles que detém a história e os processos de conhecimento construídos naquele grupo social.
Por fim, os considerados “políticos enferrujados” de Senhor do Bonfim foram os que deram, do ano 2000  ao ano 2012,  à nossa terra,   o toque da modernidade, estruturando o município nos moldes da moderna gestão: “implantação da Lei de Responsabilidade Fiscal; implantação do Portal da Transparência; criação da Controladoria interna e geral do município; estruturação das Secretarias de Governo; Criação dos Conselhos nas áreas de Saúde, Educação e Assistência Social; implantação eficiente da LOAS; implantação de programas sociais, educacionais e de saúde de última geração; implantação dos Programas de Saude da Família; implantação das Escolas de Tempo Integral; implantação da maior política habitacional do norte da Bahia; implantação do SAMU; implantação da Saude Plena; Criação dos Fundos Municipais de Saude, Educação e Assistência Social”, entre dezenas de outras iniciativas inovadoras.

A viagem para Salvador  tornou-se-me menos enfadonha. E nos deixou a certeza de que, apesar das falas inconsequentes, a experiência e a competência são aliados importantes  e indispensáveis a quem deseja e deve se lançar na futura e difícil tarefa de recolocar  Senhor do Bonfim na rota da qual se desviou.

Paulo Machado
Senhor do Bonfim, 18-07-2015

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