sexta-feira, 31 de outubro de 2014

RUA 11 DE AGOSTO


RUA 11 DE AGOSTO

Rua 11 de Agosto, centro da capital paulista. Esta pequena via, encravada entre antigos e suntuosos edifícios, entre os quais o da sede do Tribunal de Justiça de São Paulo, foi, outrora, protagonista de um dos episódios mais patéticos da história do Brasil.

Era o ano de 1897. A Guerra de Canudos aterrorizava o sertão da Bahia, mobilizando enormes contingentes militares, que, ao fim de onze meses de renhida batalha, acabaram por varrer do mapa a aldeia sagrada de Antônio Conselheiro.

Dentre as sucessivas expedições enviadas ao sertão pelo governo da república, estava aquela comandada pelo temeroso coronel Moreira César, celebrado, até então, como o mais habilitado na "arte da guerra". Tal expedição, contudo, não logrou o êxito que se esperava, deixando-se bater pelos sertanejos antes mesmo de penetrar o arraial conselheirista. Num rompante, ao mesmo tempo, de coragem e imperícia, foi Moreira César ferido por bala mortífera, sendo seu cadáver deixado à beira de pedregosa vereda, nos arredores de Canudos.

É aqui que começa a patetice desse episódio.

Disseminou-se Brasil afora a notícia de que um certo Arnaldo Roque, ou Cabo Roque, havia sido fulminado por bala “jagunça”, enquanto abraçava, num gesto de cega fidelidade, o cadáver do malogrado coronel Moreira César. (Talvez para evitar que mãos inimigas viessem a profanar o corpo inerte do idolatrado chefe).

Jornais de todo país reverberaram peças laudatórias em honra do abnegado Roque. Gabos e louvores vinham de toda parte, enaltecendo o herói que se tornara celebridade de um momento para o outro.

O jornal A República, de 15 de março (1897), não economizou palavras: “Moreira César, disciplinador inexorável, era de tal modo querido que ao lado do seu cadáver surge uma figura ideal de abnegação e de heroísmo – a desse Arnaldo Roque, nome que deve ser ensinado a nossos filhos, e aos filhos de nossos filhos, como uma legenda republicana. Quando a gratidão nacional erguer na praça pública o monumento que deve à memória de Moreira César, não há de faltar, no bronze glorioso, a figura épica de Roque”.

Na edição de 26 do mesmo mês, O País, outro jornal de orientação republicana, informava ter recebido, proveniente de coleta realizada entre pios cidadãos, a importância de 220 mil Réis, a ser destinada à “família do denodado e valente Cabo Roque, o heroico soldado que recebera a morte quando guardava o corpo inanimado do bravo coronel Moreira César”.

A morte heroica de Roque entrava na ordem do dia. Nas igrejas, fiéis contritos choravam o desaparecimento do novo mártir da república; nas câmaras municipais moções de pesar se multiplicavam a todo instante, em memória do pranteado brasileiro.

Em cidades importantes do Brasil, praças e ruas tiveram seus nomes trocados pelo o do intrépido e valente Cabo Roque. Logradouros tradicionais eram rebatizados, adquirindo a marca do herói de Canudos.

A lenda, todavia, não demorou a desfazer-se. Para desespero dos republicanos, ainda no dia 26 de março, o Jornal do Comércio trazia estampado nas suas páginas: “O Cabo Roque, o glorioso cabo Roque, morto depois de ter acabado a munição, defendendo como um cão fiel o cadáver de Moreira César, o Cabo Roque glorificado pelos jornais de todos os quatro ventos da América do Sul, que já tem uma praça em Campos com o seu nome – praça cabo Roque – em cuja esquina em letras brancas a Câmara mandou fixar uma placa memorável, o Cabo Roque acaba de aparecer são como um pero e salvo como um arrependido em Queimadas!”

No dia 4 do mês seguinte, informava a Gazeta de Noticias, que, em conversa com o engenheiro Teive Argollo, Roque declarara “que fazia parte do grupo que conduzia em uma padiola o cadáver do coronel Moreira César, quando os jagunços atacaram o grupo, sendo obrigado com os seus companheiros, para escapar à morte, a abandonar o corpo no mato; que não se abraçou com o cadáver do coronel; o que fez foi fugir com os seus companheiros”.

Deste modo, reaparecia vivíssimo o famigerado Cabo Roque, “vítima da desgraça de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”, nas palavras de Euclides da Cunha.

Retornemos, assim, à aprazível rua 11 de Agosto. Denominada, na época, de rua do Quartel, foi ela rebatizada de rua Cabo Roque, como ocorrera a tantas outras país afora. Superada a farsa que punha no altar da pátria o tal Cabo Roque e desmascarada a campanha republicana em torno deste “herói sem caráter”, foi a velha rua de novo batizada, ganhando a atual denominação: rua 11 de Agosto.

Que papelão!

José Gonçalves do Nascimento
jotagoncalves_66@yahoo.com.br

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