segunda-feira, 6 de abril de 2015

REMEMORANDO A SECA DE 15





Há cem anos tinha lugar uma das piores estiagens de todos os tempos: a seca de 1915, que espalhou flagelo sobre o chão nordestino e inspirou obras de vulto como o romance O Quinze, de Raquel de Queiroz.

A seca de 15 eclodiu num momento em que o nordeste ainda tentava recuperar-se dos danos provocados pelas terríveis estiagens de 1877/79 e 1900, quando aproximadamente metade da população nordestina ou morrera de fome ou migrara para outras regiões do Brasil, em especial para Amazônia, de onde nunca mais haveria de voltar.

Sem qualquer ação governamental que dotasse o nordeste de condições infraestruturais capazes de combater os efeitos das estiagens prolongadas, como ocorre ainda hoje, passado já um século, a seca de 15 devastou grande parte do nordeste brasileiro, especialmente o estado do Ceará, afetando drasticamente a economia regional e levando à morte milhares de seres humanos, entre homens, mulheres e crianças.

Em meio a semelhante crise e sem ter para quem apelar, as pessoas ingeriam o que estivesse ao seu alcance, como raízes, brós, beldroegas, mucunãs, ervas daninhas, insetos, e até mesmo animais mortos. Diante da necessidade extrema, valia a lei da sobrevivência, não importando ao faminto a qualidade do que era consumido.

Doenças relacionadas a esse tipo de calamidade logo começaram a alastrar-se pela região, matando aos milhares, principalmente os velhos, as crianças e as pessoas mais debilitadas. Dentre tais moléstias, avultavam a varíola, o sarampo e a disenteria, além de uma série de outras enfermidades provocadas pela ingestão de água e alimento de péssima qualidade, como a enterite e a gastrenterite.

O escritor e humanista Rodolfo Teófilo, num gesto ao mesmo tempo de indignação e obstinada denúncia, pintou com riqueza de detalhes o quadro de horror a que fora reduzido o nordeste, em consequência de tais fenômenos. São as imagens: “uma desgraçada mãe, só ossos e pelancas, morta no meio da estrada, no seio uma criancinha esquelética procurando sugar algumas gotas de leite do cadáver; um retirante animalizado, metido numa gruta, alimentando-se da carniça humana que encontrava nos caminhos; uma criança encontrada numa casa abandonada à beira do caminho, fechada na camarinha, caída de fome e chupada de morcegos, que lhe cobriam o corpo como um lençol negro; um desgraçado retirante estirado na estrada, no marasmo da fome, sem forças para mover um músculo, cercado de urubus vorazes e famintos, que não esperam a morte da vítima, mas a apressam, vazando-lhe os olhos com o bico adunco...”.

Ao invés de adotar medidas que atendessem o sertanejo no seu torrão de origem, evitando-se seu deslocamento para outras paragens, o governo, no caso específico do Ceará, optou por encerrar os flagelados num “campo de concentração”, nos arredores de Fortaleza, onde mais facilmente poderia distribuir suas migalhas. Encurralados e reduzidos à condição de animais, aqueles homens e mulheres iam se tornando cada vez mais vulneráveis do ponto de vista físico, perecendo aos centos, aos milhares, em consequência das inúmeras enfermidades que por lá grassavam a todo instante.

Era nessas circunstâncias que, a cada dia, levas inteiras de retirantes cruzavam o nordeste brasileiro, na busca ilusória de melhores condições de subsistência. No romance O Quinze, escrito nos anos trinta, a escritora cearense Raquel de Queiroz põe em cena a saga de Chico Bento que, após abandonar terra e criatório, parte com a família em direção ao litoral do Ceará, na esperança de ali encontrar dias melhores.

Ao longo da árdua e tormentosa jornada, terá a pobre família de migrantes a desfortuna de experimentar ao extremo todos os rigores da estiagem, a ponto de presenciar a morte, em decorrência da fome, do primogênito Josias. Cada vez mais mergulhados na trágica e brutal realidade da seca, e desfeitas todas as esperanças de uma vida melhor, também eles terminam esbarrando no famigerado “campo de concentração”, onde, junto a tantos outros sertanejos, ficarão a mercê da própria sorte.

Passado um século, desde aquele terrível flagelo que se abateu sobre o nordeste do Brasil, matando uns e escorraçando outros, pouquíssima coisa se fez no sentido de combater ou, pelo menos, minimizar os efeitos nocivos das estiagens prolongadas (visto que a seca é um fenômeno congênito, e, portanto, irreversível).

Depois da seca de 15, outras secas vieram e todas igualmente devastadoras. Os governos, no entanto, mantiveram-se indiferentes à questão, pouco fazendo para solucionar o problema. Neste momento, áreas inteiras do nordeste e do sudeste estão sendo afetadas pela falta de água e seus efeitos deletérios. E os governos de braços cruzados, como se nada estivesse ocorrendo.

Aplique-se ao nordeste e ao Brasil a assertiva do insigne homem de letras já mencionado anteriormente, Rodolfo Teófilo: “O Ceará está condenado não por lhe faltarem elementos de defesa contra as secas, mas pela indiferença dos poderes públicos”. Tais palavras, proclamadas quase cem anos atrás, ressoam atualíssimas em nossos dias, impondo-se como um grito de veemente denúncia, diante da omissão e indiferença dos governantes do Brasil, em relação ao problema secular das estiagens prolongadas.



por José Gonçalves do Nascimento*
*Poeta e cronista

Academia Bonfinense de Letras

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