sexta-feira, 20 de novembro de 2015


MORTE E VIDA SEVERINA
(notas acerca de um poema sessentão)
por José Gonçalves do Nascimento*
Na história da poesia, poucas obras obtiveram tanto sucesso quanto “Morte e vida Severina”. Escrito há sessenta anos, o belo poema de João Cabral de Melo Neto é um marco da cultura brasileira, capaz de arrancar aplausos dos mais diferentes públicos.
O autor, diplomata de carreira, mas sem se desvencilhar da realidade sertaneja, em especial do seu estado, Pernambuco, busca no retirante nordestino a inspiração para a sua obra maior. A figura do retirante, já presente em Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, Jorge Amado, Cândido Portinari, dentre outros, atende aqui pelo nome de Severino. Severino que, aliás, “é santo de romaria”, venerado em grande parte do nordeste.
Como tantos brasileiros, Severino larga seu torrão natal e vai para a cidade grande. Vai não por “cobiça”, mas com o propósito de “defender a vida”. Não por acaso, a trilha escolhida é a do rio Capibaribe (o “fio” da “vida”), que após serpentear entre sertão, agreste e zona da mata, desemboca preguiçoso no mar do grande Recife.
Tão logo principia sua caminhada, o esperançoso retirante começa a deparar-se com a triste realidade da morte. Morte que o acompanhará até o fim da longa jornada. O próprio Capibaribe, “o caminho mais certo” e “o melhor guia”, está seco, morto, pois como “ os rios lá de cima”, na seca ele também “corta”.
No primeiro momento, encontra Severino dois homens que carregam um defunto, aos gritos de “irmãos das almas”. O "finado", que também se chama Severino, morreu de “morte matada”, “numa emboscada”. Tinha ele “somente dez quadras” de terra, “todas nos ombros da serra, nenhuma várzea”. “Queria mais espalhar-se”, “voar livre”, num mundo dominado pela força do latifundiário. Queria “ter uns hectares de terra”, “de pedra e areia lavada”. Por isso o mataram de “bala” de “espingarda”.
Andando mais adiante, depara-se o retirante com um velório onde se cantam “excelências” ao morto, que, de novo, se chama Severino. Por último, assiste ao enterro de um lavrador de eito, sem exagero a cena mais dramática da peça. A passagem, magistralmente musicada por Chico Buarque, narra a descida do morto à sua “cova”; “cova” que nem é “larga” nem “funda”, é apenas a parte que lhe “cabe” nesse imenso “latifúndio”. “Não é cova grande, é cova medida, é a terra que (ele) queria ver dividida”.
Trata-se de mais uma vítima do “latifúndio”; “Latifúndio” que nunca foi “dividido”, privando o nordestino (da “caatinga” ao “agreste”, do “agreste” à “zona da mata”) do direito sagrado da terra – seu único meio de subsistência. Latifúndio que tirou do camponês o direito ao “brim”, à “camisa”, ao “sapato”, ao “chapéu”, ao “xale ou véu”, à “roupa melhor”, à “fazenda”. Latifúndio que é responsável por tanto “sangue” de “pouca tinta”; por tantas “mortes e vidas severinas”.
Cansado da árdua viagem, resolve o retirante buscar “um trabalho de que viva”. Mas como “a morte é tanta” por aquelas paragens, “só os roçados da morte” “compensam” “cultivar”. Os únicos ofícios que lhe são oferecidos são aqueles relacionados à morte: “benditos”, “rezas” “excelências”, “ladainhas”, “enterros”. Ou seja, como “a morte é tanta” por “lá”, “só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar”.
Ao longo do caminho, Severino encontrará outros Severinos. Assim, o retirante funde sua saga à saga dos demais retirantes que, como ele, resolvem partir em busca de melhores condições de “vida”. Nessa realidade social marcada pela fome, pela pobreza e pela morte, todos são Severinos, “iguais em tudo e na sina”.
Depois de penosa via crucis, “saltando de conta em conta” o “rosário” da “morte”, finalmente, aporta em Recife, “onde o rio some” e a “viagem se fina” O retirante, que antes só pensava em “defender a vida” encontra-se de todo desiludido. Ele, que almejava “aumentar” a “água pouca” “dentro da cuia”, “a farinha, o algodãozinho da camisa”, agora se dá conta de que desde que partira do “sertão”, “seguia” seu “próprio enterro”. E, numa espécie de crise existencial, chega a cogitar a possibilidade de “saltar” “fora” da "vida”.
É quando, num jogo de antítese extraordinário, uma mulher noticia a “explosão” da “vida”. Uma criança acabara de nascer, “saltara” “para dentro da vida”. O nascimento que ora se anuncia opõe-se à desesperança de Severino, que, a partir daí, assiste a tudo em silêncio, como que inebriado com a “beleza” da vida que “brota”.
A afinidade com o evento natalino não é casual, haja vista que a peça é um “auto de natal” (pernambucano). O pequeno Severino que acaba de nascer é comumente associado ao menino Jesus, que surge dos manguezais recifenses, e que tem como pai um carpinteiro (Seu José Mestre Carpina), filho de Nazaré (Nazaré das Matas), nordeste do Brasil.
As últimas palavras (proferidas pelo velho Carpina) “celebram” a “explosão” da “vida”, que vence a morte e a desesperança: “não há melhor resposta/que o espetáculo da vida:/vê-la desfiar seu fio/que também se chama vida/vê-la brotar como há pouco/em nova vida explodida/mesmo quando é a explosão/de uma vida Severina”. E a morte, que pareceu sempre "ativa", acaba vencida pela "vida" "com sua presença viva".
"Morte e vida Severina" é, acima de tudo, um hino à esperança.
*Poeta e cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br

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