quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Bate-papo quântico:Nas cinzas do São João o rastro do Caroá




Escritor Hélio Freitas
Britto Jornalista (de Chapéu e barba)

Por Antonio Britto
Não é de hoje que eu já sabia. Sentado ali na Praça da Lagoa, o Nego Dêda disse-me um dia: “Bonfim e o São João nasceram aqui”. O Alano Sena Gomes e o Luiz Gonzaga ouviram isso de Lampião, acreditaram e foram homenageados pelo Bloco Caroá, agora em 2012.
Foi por isso que entrei no bloco e curti seu astral. Cantei porque todos cantavam e sorriam de satisfação. Entramos nas casas como antigamente e no meio do caminho abracei Fernando Coelho e o seu bandolin... Curiei o charango boliviano de 10 cordas do Zecrinha e vi como o bichinho miúdo é zuadento, mas merencório. Posei pra fotografia sem nada cobrar, a exemplo de Hélio Freitas que um dia antes (22/06) pintou de graça um retrato valioso, em preto-e-branco do São João de outrora e me deixou publicar nas mídias sob forma de “Entrevista”.
Era tarde de 23 de junho, dia de fogueira, dia de guerra de espadas e dentro do Caroá senti que o São João de Bonfim tem mesmo simetria com o nascimento da cidade. O violão do Mario Jambeiro, o Marão, jurou que Bonfim é gêmea com o São João. O Carlinhos Canhoto foi adiante, disse que são da mesma placenta. O Ronie Von a garantir que São João é feito de sanfona, cantiga de roda e suor de licores...
Não tomamos dose nenhuma (a não ser de álcool que não embebeda, só libera) e sabe-se lá por que na 9ª visita estavam todos embriagados de prazer. Ninguém cantou nada fora do junino e o repertório foi inesgotável. Tudo em roda de gente. Coisa de calor humano. De pessoas que antes de tudo se exibem para si. Todos no ápice do tao, em plena harmonia individual, agradando-se de estarem unidos pela tênue e forte fibra do Caroá.

Ah, como foi bom. E bonito! Uma pena que eu tenha entrado 50 metros depois do bloco ter largado do Hotel Novo Leste e que eu tenha saído antes da maratona chegar ao final. Felicidade do Jairo que apareceu na Praça Nova, da Jacira que cantou mais do que o violão que tomou emprestado, da psicóloga Marcela que abriu as portas à recepção ao povo da Tapera ou Vila Nova da Rainha ou à autenticidade do São João. No bloco, Mauro Coelho não teve tempo para fotografar as irmãs Militão, porque fez tomadas para uma reportagem especial da mídia especializada.
Como é bom a gente se sentir criança, bater palma sem esforço para aplaudir o ritmo da ciranda... Por culpa da entrevista do Hélio, ao entrar em cada casa eu me sentia como se fosse componente de uma das bandas de Calumbis que outrora se dirigiam à casa de Antônio Preto, no Bonfim antigo... Não fomos ao Campo do Gado, Gamboa, como naquele tempo, mas o Pernambuquinho ta na beira do eterno roteiro do Caroá.

O violão do Clóvis e o cavaquinho de Loló são fregueses desses caminhos velhos e novos. O Roberto Simões e a maraca do Batatinha não aceitam desvios. Quebram-se quaisquer dos instrumentos do Caroá que ouvirem som do São João em trio elétrico. Maria Guirra, Glória da Paz, Salomão e o prolongamento dessa tribo só deixam o Caroá no último pau-de-arara, que Idinho assegura que nunca haverá. Se o Caroá falhar – diz ele – vou me entrincheirar na Volta do Morro.
Saí correndo pra dizer à Clélia e ao Hélio que continuassem no sofá, que lá para as tantas, meia-noite acima, o Caroá ia chegar, inteirinho, não igual às 20 horas quando nem o fotógrafo nem o Fernando encontravam a Solange Coelho... Mas ia chegar igualzinho aos blocos de outrora. > “Igualzinho, não. Não pode. Afinal, tudo que é sólido desmancha no ar” – retrucou Valdízio Nunes.
Mas dá pra matar saudades daqueles tempos, melhores em segurança e em confiança nas pessoas – amenizei pra não perder na discussão.  Já pensou ter eu de enfrentar escolásticos e estóicos pra defender a continuidade do que todos querem: o São João com sabor de canjica, cheiro de fraternidade, dança espontânea, ruas cheias de casas com cadeiras nas portas, gente entrando e saindo...
Lá fora existia o inevitável showroom da modernidade. Cujos ecos gritavam certo idioma junino. Gonzagão foi motivo de ilustrações. Trio Bahia, Trio Nordestino e Clã Brasil fizeram-se bons porta-vozes da reminiscência. Outros esfregaram o anti-São João na cara da cidade. Mas quem confraternizou no Caroá não ouviu senão a transcendência da verdadeira festa junina cultivada pelo grupo.
Se alguém disser que o Caroá realiza uma operação de abstração que faz supor uma proposição real, diga. Independente disto ele é há 27 anos um bastião dessa tradição pós-pataxó. Nem por isso o Caroá deixou de fazer brilhar o seu estandarte. E entre os adereços de frente do bloco ainda pontilhou um casal de noivos, cuja estrela maior foi a “Ex-miss My Love R$1,99”.
A celebração do Caroá e ao Caroá foi feita de desfile olimpicamente caipira, com ritual de licor, canjica, milho assado, amendoins e mesas fartas. Fogueiras primas-irmãs das de Augusto Sena Gomes também. E a lendária Sinhá Cantadeira, dos anos 40 e 50, se não estava em nossa companhia (tenho dúvidas) foi bem substituída – já que um coral que brota da vontade genuína, como o do Caroá, faz milagres. Esta segunda-feira de cinzas do São João pode ter ofuscado a minha lembrança. Mas o rastro do caroá nos é, de fato, indelével e inopinadamente visível.  

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